segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

“REQUIEM” POR 2018: “O ANO DOS CHARLATÃES”


                                                

É certo que de há décadas fiz o voto ( e impu-lo na minha conduta) de declarar guerra ao pessimismo primário e às lentes opacas, cinzentas, depressivas com que olhar a paisagem em meu redor. Mas, neste final de 2018, a realidade ultrapassou o desejo. Já tinha decidido deixar em branco o último dia ímpar deste ano, propositadamente para não quebrar o meu antigo compromisso. Porque não é nada fácil assistir ao sol poente de 2018 sem detectar fantasmas reais rajados de negro.
Entretanto recobrei ânimo no artigo de Moisés Naim, publicado ontem em EL PAÍS, sob o impressivo título de “2018: O ano dos charlatães”. Mas é isto  que eu desejaria escrever – disse comigo mesmo. E aqui estou para não só reproduzir o pensamento do articulista, mas para visualizá-lo em muitos outros episódios desta “comédia bufa“ do ano a finar-se.
Moisés Naim recorta o perfil do “charlatão digital” que escolhe o seu público-alvo, as sua “vítimas”, propensas à credulidade fácil, “pessoas que, com toda a razão, se sentem agravadas, frustradas e ameaçadas com o futuro. Elas constituem um apetitoso mercado para os charlatães que lhes oferecem soluções simples, instantâneas e indolores”. Com plena propriedade, o autor personifica em Vladimir Putin e em Donald Trump o protótipo do malabarista profissional que recorre a todos os meios, lícitos ou ilícitos, entre os quais as redes sociais, para espalhar as suas mentiras. E concretiza: “Segundo o Wasington Post, Trump fez 5.000 afirmações falsas nos primeiros 601 dias de presidente, uma média de 8,3 por dia. Recentemente bateu o seu próprio record, produzindo num só dia 74 mentiras. Pouco lhe importa, porque ele sabe que o povo está pronto para aceitar”.
É deveras assustadora a meteorologia dos tempos que correm, batida e rebatida, vestida e travestida, alucinada e tresloucada até ao limite da mais rasca irracionalidade de não saber para onde  vai nem de tomar pé na voragem da torrente quotidiana.  Bem vaticinou Fernando Pessoa:
Ninguém sabe que coisa quer
Ninguém conhece que alma tem
Nem o que é mal nem o que é bem
Tudo é incerto e derradeiro
Tudo é disperso nada é inteiro
  E é neste caldo febril de cepticismo e obscuridade que surgem os ilusionistas de circo, a que Moisés Naim chama charlatães. E acrescenta: “Ultimamente o mercado da charlataria, especialmente na política, tem alcançado tão grande apogeu”. Não só na política. Também na economia, nas convenções, até nas religiões.
Não será difícil “ver”  no cenário europeu a batraquiomaquia do Brexit, o populismo na Hungria, a ascensão do autoritarismo na Alemanha, na Andaluzia e – oh céus! – o regresso do maquiavelismo militarizado que amanhã será entronizado no Brasil. E mesmo sob a bandeira republicana verde-rubra, vão-se infiltrando no corpo social, como enguias entre os seixos, as promessas não cumpridas, os ditos-por não-ditos, os trapezistas invertebrados, enfim, os charlatães. Sem esquecer as contorções internas cá do burgo por parte de quem não lhe doi, nem um pico, a arte de branquear factos e autores cuja negritude deveria fazê-los cobrir de vergonha. Ou até a espantoso e cega obsessão de trazer para protagonistas de cena  aqueles que foram corridos de dentro de casa e agora voltam impantes, perdoados, canonizados por quem os amaldiçoou e os apeou sem apelo nem agravo. Francamente, já não sei de que terra sou, Nem me reconheço sequer!
Preferia ter cantado loas ou, como nas liturgias que roçam a charlataria, ter pago um sumptuoso Te-Deum ao ano de 2018. Seria contra a verdade dos factos. Seria engordar a repugnante massa dos aprendizes de feiticeiro da feira, que Moisés Naim condena nestes termos: “Chegámos a esta lamentável realidade: os seguidores (por acção ou omissão, acrescento eu) dos charlatães são tanto ou mais culpados que eles, pois que levam a sociedade a apoiar más ideias, eleger maus governantes ou acreditar nas suas mentiras”. 

31-Dez-18
Martins Júnior

sábado, 29 de dezembro de 2018

MADEIRA NAVEGANTE NA RIBEIRA QUE É SECA



                                                                      

                      Imagem dos 600 natais no palco da Ribeira seca 


Aqui
                Madeira mareante
                Rasgou o mar atlante
Içou velas e cordame
E leva na gávea a Criança de outras eras
Não é a cruz das caravelas
Nem o cristo da fé
Escrava do Império
               
                É um Povo que ali vai
Para derrubar o mito férreo
Mostrengo Adamastor
Outro que seja  do medo e do furor

Povo Infante
Da nau Madeira supremo comandante
Que faz da Ilha escassa o seu Reino maior

29-Dez-18
Martins Júnior

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

DEVOTOS DESTRUIDORES DE TODOS OS PRESÉPIOS – DOIS BREVES CONTOS DE NATAL

                              

“Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
 Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças”

Era uma vez… Foi uma vez… Hoje, porém, é a vez. Não tem sido nada fácil fechar os olhos para não ver ou tapar os ouvidos para não escutar… Neste fim de ano, bafejado pelo sopro intimista da candura do Natal, esperava tudo menos este travo a decepção, a angústia e, no limite, a revolta. É que o cinismo veste de tal forma  o verniz epidérmico do Natal  que chega a tornar-se o mais vexatório testemunho anti-Natal. O texto de Miguel Torga pertence ao reino do “Era uma vez”… Mas outro conto e outra factualidade aí estão a demonstrar a monstruosidade de outros tempos.
Na chamada “Casa Branca”, o “rei” - mau, feio, hediondo de forma e fundo - mandou erguer um grande  presépio, com aqueles gigantones bíblicos, do tamanho dos bofes amarelos do monarca. O Menino, esse era do mais precioso marfim, bracinhos abertos, angélico sorriso. O infante recém-nascido soube que o seu ‘dono’ era ruim, assassino de velhos e devorador de crianças. Então, todas as noites gritava aos quatro cantos do palácio, como que a dizer: ”Tirem-me daqui, tirem-me daqui”! … Quanto mais gritava, mais o amarravam à gruta dourada. E mostravam-no garbosamente às visitas ilustres. Mas um dia o “rei” saiu para a guerra. E logo o Menino e sua Mãe aproveitaram a ausência do ditador e foram juntar-se  à` multidão de esfomeados sem abrigo que tentava ansiosamente entrar nas terras do reino para poder sobreviver. Mais tarde,aos oito anos de idade, o Menino morreu, vítima de subnutrição e maus tratos.
Noutro território distante e num outro reino avaro, o “rei” – feio, astuto, medonho de formas .e fundo – também mandou montar um presépio gigante, de fino recorte ortodoxo, nos jardins do palácio. Todas as noites juntava a corte e, em uníssono, todos  cantarolavam melodias tais que se ouviam pelas redondezas. Uma aura de devoção quase celestial fazia a fama dos jardins imperiais. Mas o que ninguém conhecia era o instinto visceral do “czar”. Até que um dia, para melhor disfarçar o vírus assassino que lhe corroía o corpo, escondeu a bomba letal por baixo do berço do Menino. E, para impor-se ao mundo, convocou magna assembleia. Num ímpeto de orgulho satânico, mandou aos generais que accionassem o poderoso engenho – o último grito dos arsenais bélicos de todo o mundo.  Depois,  como Nero na antiga Roma, sentou-se extasiado com a trajectória do instrumento fatal que causou centenas, milhares de vítimas mortais em regiões distantes. Quanto ao Menino, estilhaçou-se pelos ares, sem o mínimo pesar do devoto imperador. Em seu lugar, mandou colocar um outro exemplar e até ordenou aos monges ancestrais que se cantasse um solene  Te-Deum de Acção de Graças pelo portentoso êxito que augurava o genocídio de populações inteiras, a destruição fria, sádica do Menino de Belém.
Que mais provas esperamos nós para constatar o cinismo e a hediondez dos donos deste mundo?... Ah, se o pobre Menino pudesse falar!
No breve esboço dos dois contos trazidos ao Presépio de Belém pode ler-se o velho axioma: “A realidade ultrapassa a ficção”. Com efeito, o desplante e a desfaçatez com que os Herodes de hoje se apresentam, pomposa e despudoradamente, denunciam o embuste do Natal de Cristo e convocam a consciência colectiva contra os  destruidores institucionais de todos os Natais.
Quando passará esta nuvem negra de pessimismo, este presságio amargo de uma alegria que tanto tarda?... Só quando o Povo, verdadeiro dono da soberania do mundo, abrir os olhos e for ele mesmo a construir o autêntico Presépio de Belém!

27.Dez.18
Martins Júnior                                                                                

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

NATAL DA DECEPÇÃO


                                                       
         
        Gostaria de nunca ter escrito esta mágoa. E não sei se um dia arrepender-me-ei de tê-lo feito. Mas a evidência dos factos não me larga.
         O Presépio aí está: o de Belém, o único, a matriz de todos os outros. Os outros, filhotes estandardizados, multiplicam-se e crescem como cogumelos por quanto é canto, desde as capelas humildes, os recantos de jardim, as praças espectaculares. Desde os casebres de aldeia aos palácios do rei. Até aqueles que decretam matar o Menino também têm nos seus aposentos um gracioso presépio. O vulgo – crente ou não crente – esse diverte-se, comove-se, delicia-se com os ‘bonecos’ figurantes de cena: burrinho, vaquinha, pastorinhos, ovelhinhas, anjinhos tocando, cantando e outra vez retocando  o Gloria in excelsis Deo. Na liturgia do dia, repetem-se até à exaustão os mesmos relatos, as mesmíssimas ingénuas peripécias de José e Maria batendo em vão à porta das pensões à procura de cama e parteira para a grávida donzela.
É de ver e pasmar a atenção dos mirones para as originalidades e ‘originalidezes’ de cada espécime de presépio, do mais rude ao mais pintado. E ninguém se lembra de interpelar aquela Criança, para fazer a única e necessária pergunta: “Que vens fazer aqui, Menino?.. Que é que te fez nascer por estas bandas?... Qual é o teu projecto de vida”?..
E aí começa a grande decepção. Para a própria Criança, em primeiro lugar. Todo o seu sonho transforma-se em pesadelo, vendo a olho-nu que, rodados  mais de vinte séculos, o “homem continua lobo de outro homem” e a anunciada bandeira da paz universal, afinal, mais não é que um camuflado ensopado em sangue de guerra. A própria instituição que assaltou o estábulo de Belém, alterou-lhe a traça e as alfaias, caiou e rebocou-lhe as paredes, alargou e alteou os pilares, até fazer dele um faustoso mausoléu, onde morre o espírito e cresce a contradição. “O mundo, que era seu, não o reconheceu”. (João.1, 10). É por isso que o Natal não passa de uma ficção. Tão bem urdida  que veio a tecnologia colori-la de fantasias mil. Dir-se-ia que os poderes – financeiro, político e  pseudo-religioso – agora embebedam de luz o planeta, para deixá-lo às escuras o ano inteiro!
Não é exótico  masoquismo o que escrevo. Não me faltam canções, iguarias, carrilhões e  simpáticas liturgias. Nem me faltam presépios, dos mais genéricos aos mais temáticos. O que faz falta é o Presépio! O que incomoda é o narcótico que nos domina, directa ou indirectamente. E o que revolta é hibernar “alegremente” neste espasmo de contradições.
Já vedes o porquê do desabafo inicial: preferia nunca ter escrito este fio de mágoa profunda. Conforta-me (e a muitos, decerto) o desejo de manter-me acordado e vigilante para actualizar em cada dia que passa o projecto vivo da Criança de Belém!

25.Dez.2018
Martins Júnior


domingo, 23 de dezembro de 2018

A ÚLTIMA PÁGINA DE UM “DIÁRIO DE BORDO”


                                        


“O que eu andei p’ra aqui chegar”!
Assim cantou José Mário Branco. E assim cantamos nós também, ao fim de nove vigílias madrugadoras prenunciando o parto da maior alma que Deus deitou ao mundo: “O que nós andámos p’ra aqui chegar”! Foi uma viagem avassaladora, navegando na banda larga dos seiscentos anos, em busca do tempo perdido e de uma identidade diluída e, de nono, repetidamente recuperada, ao ritmo dos séculos vividos. Partindo da milenar tradição oriunda de Belém, atravessámos cabos e gerações, na ânsia de saber quais teriam sido os presépios de outrora. Não os presépios da praxe, mas  qual o  contributo  efectivo  na construção do projecto único que a Criança recém-nascida trazia consigo: o da humanização-divinização de toda a Criação, decididamente do Homem-em-situação. Desde o século XV, os nossos antepassados semearam fagulhas e “canções ao vento que passa”. Todos eles inscreveram o seu nome na folha  de serviços contínuos em prol dos séculos que lhes seguiram. Somos, pois, legítimos herdeiros do vasto espólio que nos deixaram.
Na última linha do “Diário de bordo”, ficou-nos esta palavra de ordem: “Hoje, sois vós  (leia-se, somos nós) os bandeirantes do futuro, os construtores do século que deixareis aos vindouros”. Somos, diria hoje o Papa Francisco, “os sentinelas da madrugada”. De todas as manhãs promissoras de um mundo melhor. No convés desta “Nau São Lourenço”, que começa na ponta que lhe deu o nome, a nascente, e termina no extremo leste da ilha, prosseguimos viagem, ora afrontando ventos e nortadas, ora ancorando na baía onde construímos o Presépio autêntico onde o Menino, o Libertador, tenha lugar.
Por todas as vezes que fomos parturientes de uma Ilha Melhor, estamos de parabéns. Por todas as outras, em que retardámos a marcha e provocámos rombos no processo evolutivo da nossa história comum, aí teremos a coragem de reconhecer os desvios e voltar a encontrar a estrela mareante que nos leve ao porto da nossa identidade, consubstanciada com o projecto redentor da Criança de Belém.
É por isto – pela almejada metamorfose pessoal e colectiva – que amanhã, véspera de Natal, teremos aqui, Ribeira Seca,  a Festa do Perdão!
Estamos juntos.

23.Dez.18
Martins Júnior   

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O SÉCULO XVII NO PRESÉPIO MADEIRENSE – REFLEXÕES SOBRE NATAIS INTEMPORAIS


                                                    

Longa é a viagem através  dos 600 presépios e dos 600 natais vividos pelos madeirenses desde o Achamento da Ilha. Temo-lo feito esse percurso entusiástico, nestes nove dias de campanha preparatória do 25 de Dezembro/2018, descobrindo que gente como nós calcorreou os mesmos atalhos, as mesmas colinas e os mesmos vales que hoje são nossos. Impossível resumi-los cabalmente nesta folha volante dos dias ímpares. Apenas algumas nótulas recolhidas da prelecção das 6 horas da manhã.
Passado o sucesso patriótico dos séculos XV e XVI, ancoramos no cais sombrio do  século XVII, marcado por quatro acontecimentos incontornáveis: a dominação filipina em Portugal (fruto da imbecilidade de um jovem monarca-anarca), a construção de fortalezas militares no Funchal, a implantação do Colégio Jesuíta na capital madeirense e o reforço do “leonino contrato” da colonia, em que o colono ou caseiro ficou reduzido à degradante condição de servo da gleba.
É nesta estação que a viagem nos bate mais forte e nos faz reflectir sobre o maligno poder que o homem tem para alterar o livre curso da normalidade social e da justeza legislativa. O “leonino contrato” da colonia mais não é que a corruptela do regime das sesmarias, desde a vigência de D. Fernando, por força do qual as terras eram entregues a quem as administrasse com eficácia produtiva. De contrário, as mesmas terras voltariam ao controlo da Coroa. Entretanto os beneficiários das concessões do rei foram-se abastardando mercê dos lucros obtidos, abandonaram os campos e foram instalar-se em ricas vivendas da cidade. As terras ficaram entregues aos servos da gleba com o ónus de  entregar a dimidia ao senhorio. Cruel injustiça que perdurou até ao 25 de Abril de 1974!
A viagem hexa-centenária focaliza-se no cenário e no espírito de Belém e procura encontrar a resposta a esta pergunta: Que terá dito essa Criança aos exploradores senhorios e às suas vítimas indefesas?... Encontraremos nos textos bíblicos os mais severos anátemas contra os agressores da terra e da sociedade, sobretudo no profeta Amós e no Apóstolo Tiago, fazendo recair sobre aqueles as mais duras condenações: “A geração dos ociosos será exterminada da face da terra”!
São os homens e as mulheres – nunca os deuses – os responsáveis pela implantação de uma justiça igualitária que garante o equilíbrio das nações e a felicidade dos povos. Da viagem ficou-nos o aviso premonitório da mensagem de Belém: Fazer leis justas – uma só que seja – vale mais que ‘armar’  600 presépios. Vale mais que celebrar ou cantar 600 mil natais!

21.Dez.18
Martins Júnior                                                        

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O TRONO DO IMPÉRIO DISFARÇADO NO BERÇO DA FÉ


                                                 

No frenesim do pré-Natal não há mãos a medir nem pausa para respirar. Parece que, nesta azáfama desenfreada a caminho do presépio – seja qual o figurino, imaginário ou inexistente – o único sinal de trânsito a observar é este: “Não parar”!
Também estou nessa corrida. Estou - que digo eu?... Estamos! Aqui, neste modesto recanto da ilha, mora uma comunidade que faz um percurso enorme de seis séculos, na procura dos presépios de outrora, os que se implantaram ao longo dos 600 anos da historiografia madeirense. Já percorremos o século XV, a euforia do Achamento da ilha e o estuário crescente da expansão marítima. Em cada madrugada – seis horas da manhã – há um fio luminoso que precede a alvorada. São os momentos de reflexão sobre um passado que é nosso e que constitui o grande presépio dos 600 anos.
Estamos a navegar hoje, não nas caravelas henriquinas, mas na chamada Nau de Pedro, o Pescador, a instituição eclesiástica, que desde a primeira hora ancorou em terras madeirenses e aqui assentou arraiais, como rampa de lançamento para todo o planeta terráqueo. Era o tempo da promiscuidade sacro-profana, mas em proporções tais que a Igreja ficava com o papel de “ancilla”, serva incondicional do poder político. Da Sé do Funchal – instalada no “campo do Duque” - abriram-se mitras e solidéus por todas as possessões portuguesas dispersas nos oceanos. No Brasil, nas Áfricas, em longínquas paragens asiáticas. Pode a diocese do Funchal, a primeira fora do território continental, ufanar-se do pioneirismo indismentivel  que alcançou no seio da Cristandade de então, fruto da aura aventureira dos homens do Senhor Infante. Foi a ilha evangelizada e foi ela embrião criador de novas dioceses espalhadas pelo mundo. Aliás, foi  a tónica triunfalista das comemorações dos 500 anos da mitra do Funchal e a que deram o pomposo cognome de “Diocese Global”. Nessa digressão, porém,  ocultaram-se nódoas comprometedoras e acontecimentos deprimentes para a dignidade do poder religioso, entre os quais,  o direito de preferência  da Coroa na nomeação dos bispos e no provimento das dioceses. Sob a veste reluzente de arautos do Evangelho, “Espalhar a Fé e o Império”, os nobres comandantes das campanhas de então outro fito não tinham senão servir-se das pobres palhas de Belém para montar o trono do seu poder imperial. Acresce, ainda, o silêncio da Igreja perante o comércio de escravos que impunemente proliferou na ilha, aquando das campanhas açucareiras na Madeira.
Impossível recortar em poucas linhas as reflexões que acompanham esta comunidade, na descoberta do verdadeiro Presépio de Belém, através dos seis séculos da nossa história insular. Vamos prosseguir viagem, desde o alvor de cada manhã que nos levará ao Grande Dia. Muitas surpresas, muitas incógnitas e, sobretudo, muita sede de água límpida para a nossa sede de Verdade. “Quem quiser, venha connosco”!

19.Dez.18
Martins Júnior
                          

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O PRIMEIRO PRESÉPIO QUINHENTISTA


                                                          

           Alvíssaras, louvores e prebendas a quem nos abrisse a cancela para chegar ao primeiro presépio que a Madeira conheceu no alvor da Descoberta!
Ninguém poderá trazê-la, a “lapinha” de Belém, reproduzida nos anais do Achamento. Permitido ser-nos-á, talvez, conjecturar que os frades franciscanos que acompanharam as caravelas henriquinas teriam transladado para o chão da ilha os figurinos com que o seu Fundador e Patrono, Francisco de Assis, na cidade italiana de Greccio (1223) ousou representar, pela primeira vez no mundo,  a ruralidade bucólica da Natividade.
Mas à Ilha Verde – “Que do muito arvoredo assim se chama, Das que nós povoamos a primeira” (Lusíadas,V)  - chegaram os lampejos da estrela de Belém. E é ao clarão dessa estrela que escrevo. Porque “fazer Natividade”, segundo a Criança-Protagonista do Natal, é integrar o seu projecto, é ajuntar um tijolo, uma pedra, um cimento na construção dessa epopeia sempre almejada, mas sempre inacabada, qual seja, a ascensão da condição humana e a dignificação da sociedade. Em qualquer tempo e em qualquer lugar. Todos quantos empenham o seu talento e o seu esforço braçal nesta campanha está a actualizar o único e verdadeiro Natal, o mais genuíno Presépio de Belém.
Aconteceu em 1419 quando, a partir da Escola de Sagres, o Infante “Navegador” fez chegar à ilha os seus marinheiros, capitaneados por Tristão Vaz Teixeira e João Gonsalvez Zargo. Relegando para ulteriores considerações  os “bene ou male – fícios” do histórico empreendimento, importa realçar o contributo que a nossa Ilha deu para a ciência náutica,  para a desmitificaçãso dos pavores ancestrais, para a descoberta da verdade planetária nas suas múltiplas vertentes. Foi a era da luz contra a obscurantismo dos mitos medievais. Daqui, porto de ancoragem, o Homem partiu à conquista do Universo. É dito e consabido que a epopeia dos descobrimentos (com tudo o que de sombrio se lhe misturou) foi também um “grande Passo para a Humanidade”, equiparável aos modernos heróis, os astronautas conquistadores do espaço.
Em apoio desta constatação, cito o eminente historiador Padre Eduardo Pereira, nas ILHAS DE ZARGO: “O Infante D. Henrique deu de facto uma nova civilização ao Mundo, porque não se limitou à empresa aventurosa das suas naus. Ele não fez só marinheiros, barcos e descobrimentos. Foi mais ampla e completa a acção da sua epopeia” (…)
É este o nosso ponto de partida para a redescoberta do Natal, focalizada nos “600 Presépios Madeirenses”. Desvendar o mistério do Homem à conquista da Verdade, pelos caminhos (quantas vezes, dolorosos) da Ciência – aí se descobre também o luminoso rasto da necessária mensagem natalícia!

17.Dez.18
Martins Júnior      
          

sábado, 15 de dezembro de 2018

600 PRESÉPIOS MADEIRENSES!


                                       

         Pegou em moda o “Natal do Mercado”. Na cidade, nas vilas e aldeias a “Noite do Mercado”  é casa cheia. Primeiro, porque é preciso sair à rua, cantar. Depois, porque é preciso “mercar” um natal, escolher  - seja ele qual for – um figurino seu para usar na lapela desta quadra necessária.
         Por isso, mais que um mercado de natal, o Natal é que é  um mercado. Ele há para todos os gostos. Quantos e tantos foram os natais e mais tantos e quantos o são neste ano da graça de 2018?!
         Quantos e quais Natais?!... É Natal porque a ossatura dos cabeços e as artérias da cidade embebedam-se de luz, as árvores escondem, envergonhadas, a sua nudez vegetal  para trajarem fosforescências minerais. É Natal porque a “lapinha” lembra os tempos de criança portas-adentro do aconchego doméstico. É Natal, ainda, porque a saudade bate à porta e senta-se à lareira para conversar e unir vivos e ‘migrantes’ nossos sem retorno. E há também o Natal das “Missas do Parto” (quase sempre mais ‘parto’ que ‘missa’), a carne de vinho-e-alhos ou vinha-d’alhos, conforme os paladares, o pandeiro e as castanholas, o cacau a escolher dos braguinhas e concertinas, enfim, para miúdos e graúdos, o Natal do “sapatinho”.
         Na febre secular dos “600 Anos” ainda não se tinha falado dos 600 presépios madeirenses. É o que vamos fazer. Um percurso pedestre em volta da Ilha-Presépio, que é a nossa Madeira. Não o figurativo das “escadinhas” nem mesmo o das pinturas flamengas compradas com cheques de açúcar granulado, mas o monumento vivo de acontecimentos, pessoas, gestos e pulsões que, em cada tempo e em cada lugar, tornaram presente o Projecto do Único Natal que iluminou o planeta. Ver reincarnado em cada época o Natal de Belém, o sonho libertador d’Aquele que, sendo o Maior, é o mais diluído, para não dizer o mais esquecido, o sempre “estendido e deitado” na manjedoura do gado!
         “Eu vou correr a Belém/ Quem quiser venha comigo”… Assim se canta por quanto é templo ou capela. Faço minhas as palavras do folclore natalício. Quem quiser venha connosco, aqui, no modesto salão de cultura e fé, que é o templo da Ribeira Seca. Viajar ao longo da nossa costa territorial, cronológica e espiritual para redescobrir tantos presépios nas pègadas  da nossa história de ilhéus.
        
15.Dez.18
Martins Júnior

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

NATAL/2018: FECHADO PARA BALANÇO E SUSPENSO PARA OBRAS


                         

                         Menino ausente
                         chama um contabilista Centeno
mileno talvez trimileno
junta-lhe um mago estatístico da Católica
mais um Xi amarelo
um urso russo das estepes
e o outro das Américas do ouro  

E vê
o que eles fizeram do teu berço
o que rasgaram esmagaram do teu livro

Do teu casebre fizeram abóbada vaticana
da samarra pegureira teceram filigrana
púrpura escarlate e sacra lingerie
 lascívia império pavor de ti

Os míseros sem tecto e sem pão
que abraçaste
vê-os agora escorraçados como raça de cão
vadio leproso imundo

Os balidos dos cordeiros e as árias angélicas
escuta
agora são bombas de morteiro famélicas
do sangue de crianças como tu

Menino ausente
arrasa  fecha enterra as estatísticas
dos sacrílegos presépios que te fazem
 assassinas mãos de brancas luvas  místicas

E vem de novo refaz a tua gruta
refaz Belém
mesmo sabendo que não irá além
do ano trinta e três

Estranha gruta de Belém

A sua glória será talvez
não a de tê-la
mas a de amá-la e refazê-la
 em cada dia em cada noite
onde deixaste escrita
a rota universal da tua estrela

13.Dez.18
Martins Júnior


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

APROVADO E ASSINADO - NÃO EM PALÁCIOS DE PARIS, MAS NA CHOÇA DE BELÉM


                                                                 

           Tal como na ordem biológica, em que cada rebento deita flor e fruto na estação previamente designada, assim também há ideias e projectos que parecem predestinados à plena maturação em determinados solos da história. Vejo-o, toco-o e assimilo-o na Declaração Universal dos Direitos Humanos, acontecimento memorável comemorado ontem, a propósito do seu 70º aniversário. Feito e assinado no Palais de Chaillot em Paris!
         Dezembro 10 – portal de entrada para o mais retumbante areópago da história, quer se chame, palácio, parlamento, átrio dos gentios ou assembleia das nações! Todos estes nomes reduzem-se à dimensão de uma choça - a de Belém. Foi aí, na rusticidade mais estrénua de um estábulo que se fez carne, testemunho e vida aquilo que, vinte séculos depois, ficou estatuído e consagrado como “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Não foi preciso Código jurídico-constitucional nem vieram sofisticados juristas nem se ouviram doutas alegações finais. No corpo daquela criança e na mudez do seu silêncio estava  todo o grito da Mãe-Natura clamando Justiça distributiva, Igualdade de direitos e dignidade, sem distinção de cor, religião, fortuna ou nacionalidade.
         Provam-no os pergaminhos de outrora, o enxoval imaterial que lhe fora preparado. Dirijo-me, pois, à caixa postal de todos quantos aceitarem esta mensagem e convido-os a interiorizar os anúncios e prognósticos que, desde séculos e milénios, previram o nascituro de Belém, nomeadamente Baruc, Isaías e Daniel, os profetas do Velho Testamento, precursores da Grande Nova. Basta acompanhar os textos programáticos destes domingos premonitórios (por isso, chamados de Advento) para lermos a redacção perfeita de todo o articulado da Declaração Universal. “Com Ele (esse Menino) os altos montes serão abatidos e os vales abissais serão preenchidos, para que toda a terra se torne plana e transitável… Os caminhos tortuosos serão corrigidos… Os vossos habitantes que foram levados prisioneiros como escravos dos inimigos vencedores regressarão à sua pátria como filhos de reis. Os homens quebrarão as espadas de guerra e delas farão foices e relhas de arado para arrotear a terra e fazê-la produzir cem por um…E não haverá mais fome e não haverá mais guerra”.
         Feliz coincidência entre a Declaração Universal, em Dezembro abrindo, e a eloquência de Belém, em Dezembro findo! A beleza das metáforas bíblicas, aliada à força profética das ideias, faz deste outono-inverno a esperança portadora daquela primavera igualitária, a única que restituirá ao mundo a felicidade perdida ou denegada.
Corações ao alto e mãos à obra!

11.Dez.18
Martins Júnior
           


domingo, 9 de dezembro de 2018

70 ANOS!... HINO DE PARABÉNS OU CAMPAINHA DE ALARME?


                                                           

Quem me dera e quem nos dera ter lá estado nessa tarde sombria de outono com sabor a manhã de primavera! Foi em Paris, Palais de Chaillot, dia 10 de Dezembro de 1948. Lá dentro, os representantes de 48 países confrontados com a hecatombe da férrea ditadura nazi. Cá fora, a pequena multidão - aqueles e aquelas que tinham sobrado ao Holocausto - aguardava a proclamação universal da dignidade humana, vilipendiada e afogada no sangue da guerra. E o alvoroço tomou conta de corpos e almas, das que lá estavam e das que em todo Ocidente esperavam a grande nova: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e em direitos… sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outro qualquer estatuto”.
A mensagem correu à velocidade da luz, porque de alvorada e luz eram as suas asas, Está hoje traduzida em  512 línguas e foi adoptada por 193 Estados.
Enquanto escrevo, lá em Paris, no mesmo Palais Chaillot, ultimam-se os cenários para a solene comemoração do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Mas não será a mesma a emoção dos países (ou representantes) de outrora. Nessa altura, a assinatura do histórico documento constituía um imperativo irrecusável das nações vítimas da ferocidade bélica, era o pão para a fome e a água para a sede das populações envolvidas. Aliás, já vinha de longe o almejado  gérmen da dignificação do indivíduo face à todo-poderosa soberania do Estado, O sonho de João-Sem-Terra e da sua  “Magna Carta”,  em 1215, foi circulando nos subterrâneos da história, ganhou impulso com a declaração de independência dos EUA  em 1776, da revolução francesa de 1789, mais tarde retomado pela acção do presidente Roosevelt e do francês René Cassin, até culminar no texto de 1948.
Não tem sido fácil o percurso dessa primavera europeia. No iter negocial da Declaração Universal enviesaram-se interesses e entraves, quase todos diplomaticamente dissimulados de formulações ideológicas: uns, porque os direitos económicos e  sociais deviam sobrepor-se aos direitos individuais, portanto a dicotomia interesse do indivíduo ou direito da colectividade.; outros, como (paradoxalmente!) a Igreja Católica e o Islão opunham o argumento da subalternização do divino ao humano, que tornava inaceitável o primado do homem sobre Deus. Só em 1965, a Igreja (Vaticano II) admitiu a liberdade religiosa. Outra corrente, esta mais recente, como na Polónia e na Hungria, entende que a prevalência dos direitos do cidadão põe em causa a soberania nacional, enfim, o nacionalismo exacerbado em marcha, como nos EUA, America first. Quanto aos africanos e asiáticos, recusam os termos da Declaração porque, alegam, tal significaria a ocidentalização dos seus países. Pretendem, nesta área, autonomia de procedimentos legais e subsequentes padrões comportamentais.
Por tudo isto, quão diferente será amanhã a comemoração dos 70 anos, em Paris! Razão tinha Samuel Moyn quando, já em 2012, considerava a Declaração de 1948 uma “utopia” para os tempos que correm. Mais  frontal, embora carregada de um deprimente pessimismo, foi Angela Merkel, ao afirmar no discurso comemorativo do fim da primeira guerra mundial (1918-2018): “Imaginemos que nós, Nações Unidas, teríamos de assinar uma Declaração idêntica, Seríamos nós capazes de o fazer?... Temo que não”.
Para onde caminhamos nós?...
Ainda há uma luz ao fim do túnel. Deixo-a aqui, por corresponder à verdade factual e também para ânimo de quem luta: quando o mundo começa a perder os inalienáveis direitos humanos, têm de ser as basses, os pequenos, direi mesmo, os párias da sociedade que deverão de entrar na liça para reconquistá-los.  Dos grandes e das cúpulas nada se espera. Por isso, louvo daqui todos quantos, na sua esfera de acção, lutam, manifestam-se, dão a cara e o talento em prol da ressurreição da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

09.Dez.18
Martins Júnior                                            

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

VIVA O 8 de DEZEMBRO – DIA DO UNIVERSO-MULHER !!!


                                                           

À semelhança dos surfistas que navegam no tubo da onda e aí alcançam o corredor do pódio, assim nós, os caminheiros da vida, encontramos no oceano dos dias o vislumbre da luz ao fundo de um túnel. E amanhã é esse dia, amanhã é essa luz. Na sua monótona simbologia sacro-patriótica, o dia 8 de Dezembro vejo-o maior e mais glorioso. A distribuição de papéis pelas personagens envolventes na grande alegoria bíblica do Génesis desagua no palco da história humana e pode sintetizar-se neste breve enunciado: a miséria e a grandeza da Mulher.
Convenhamos que o título atribuído ao 8 de Dezembro é demasiado pobre, simplista, redutor: Dia feriado Nacional porque dedicado a Nossa Senhora da Conceição, Rainha de Portugal, desde D. João IV, o Restaurador.  E então, eis-nos perante o grande teatro do mundo (como diria o dramaturgo Calderon de la Barca) inebriados por um estranho pano de fundo, onde contracenam uma serpente enleada num troco de jardim (era o tempo em que os animais falavam), uma mulher e um homem esculturais na sua nudez original, namorando os três uma viçosa árvore prenhe de maçãs iguais ao doce brilho das manhãs. Era o paraíso terreal. Depois, a Eva  deixou-se enrolar na conversa da serpente, passou a mão macia pelo sensual fruto da macieira, comeu e, companheira solidária do seu homem, passou metade da maçã (ou talvez mais) ao esbelto e espadaúdo Adão. Depois, foi o ajuste de contas: o dono do pomar, escondido entre a ramagem, aparece furtivo, despe-os, a ele e a ela (ou então os dois descobriram que, afinal, estavam nus) e, sempre raivoso, o senhorio da horta condena a serpente e, com uma espada flamejante,  expulsa do paradisíaco jardim, o primeiro homem e a primeira mulher, modelados que foram  pelo próprio Supremo Escultor do Universo, mas agora caídos em desgraça.
A novela, concebida por Moisés para explicar as raízes do Bem e do Mal inatos nos indivíduos e nas sociedades, tem tudo de aliciante, comovente e mistificador para prender a atenção e a emoção do espectador. Mas não se fica por aqui. O senhorio do pomar amaldiçoa a Mulher, coloca-a numa espécie de arena, frente à pérfida cobra e obriga-as a uma luta sem tréguas. Há sangue, viperinas contorções durante toda a refrega, mas o calcanhar da Mulher acaba por esmagar a cabeça do réptil tentador.
Onde vejo eu a miséria e a grandeza do estatuto de Mulher?
Nas entrelinhas – retomando o código surfista, no tubo da onda – da própria narrativa bíblica. Descontando o naif e a ingenuidade da trama moisaica, aí mesmo se condensa a dupla condição feminina, ao longo de todas as pátrias e civilizações. De um lado, a Mulher-Ré no processo antropológico: a culpada, a desobediente, a instigadora, a traidora ao Criador, a embusteira (“culpada foi a serpente”, responde Eva ao juiz-senhorio), enfim a Mulher, causa primeira e única responsável pela desgraça da humanidade. Mas, do outro lado, a Mulher-Coragem, a resistente, a que não foge à luta, a que dá a cara e entrega-se sem limites até cantar vitória, uma vitória embebida em sangue e lágrimas, sim, mas vitória incontestada!
Na hermenêutica cristã e litúrgica, a Mulher primitiva, a pecaminosa, a autora do crime de lesa-humanidade está consignada à Eva do Génesis. A outra, a Mulher fiel ao seu mandato, a resistente e vitoriosa está personificada naquela jovem nazarena, Maria, a Mãe do Messias Libertador, a impoluta que, desde o primeiro instante da concepção, estava isenta de todo o defeito e, por isso, lhe foi dedicado o 8 de Dezembro, o da Conceição de Maria.
Quero, porém, navegar no mar alto, aproveitar a onda do dia,  estender o meu olhar por todo o imenso cenário da história humana e detectar no real quotidiano a dupla condição feminina: as mulheres que se deixaram naufragar sob os comandos machistas, as mulheres incendiárias capazes de derrubar tronos e subverter impérios, as Agripina, as desnaturadas Mary Cotton, Lalurie. Mas quero vê-las também entronizadas, sublimadas, as Mulheres nimbadas pela auréola do prestígio e pelo suave perfume da feminilidade, as combativas, as construtoras silenciosas da história, as mães doadoras da própria vida, as educadoras, elas, as verdadeiras e genesíacas matrizes do futuro! Ajoelho-me perante as Joana d’Arc, as Curie, as Madre Teresa, as Catarina Eufémia. E, por todas, diante daquela que me deu a vida que tenho e deu toda a sua vida pelos seus e pelos outros!
Sálvè o novo Dia da Mulher, no 8 de Dezembro de 2018 !!!

7.Dez.18
Martins Júnior