quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

FRANCISCO: ESCRITOR DE GEMA – “a ternura revolucionária”

                                                 

              “Já que está em corte, não posso deixar passar”. Tomo esta quase interjeição tirada das típicas partidas de cartas que fazem parte do menu familiar das  nossas oitavas da Festa, para justificar a motivação irrecusável da presente missiva. É que longe de mim estava olhar o Papa Francisco por esta frecha singular: a estilística literária dos seus escritos. E caíram-me no ‘sapatinho’ duas jóias lapidadas, cinzeladas. delicadamente  polidas pela mão do químico argentino. Para quem se  habituou  a  mergulhar no fundo ideológico das suas intervenções, esta ‘prenda’ ganhou  uma surpresa saltitante que não pode ficar em branco.
         Trabalhar com mestria a metáfora, burilar a adjectivação com elegância e propriedade terminológica, explorar a antítese, agregar sinestesias – são predicados raros, conferidos apenas aos privilegiados da arte literária. Encontramo-los no “contentamento descontente” e no “fogo que arde sem se ver” de Camões, no “espinho doce da saudade” de Garrett ou no “verde macio” de Eça e em todos os grandes cultores da língua. Eles têm momentos indizíveis de ascese, os quais só por si próprios identificam o génio criativo do escritor, apanágio dos poetas.
Pois bem: foi isso mesmo que detectei nas duas jóias caídas das mãos do Papa Francisco. A primeira: “Fazer qualquer reforma no Vaticano é como pretender limpar a estátua da Esfinge do Egipto com uma escova de dentes”. Letal e  fatal! A segunda: “Contemplar e entender a ternura revolucionária do presépio”
            Ternura revolucionária! Fico-me, hoje, por esta  segunda inspiração. Que beleza conceptual e formal! A justaposição de realidades antitéticas  - ternura e revolução, berço infantil e afrontamento bélico, canção de embalar e grito libertador – tudo converge para a ogiva perfeita que mistura a sensibilidade mais serena com a mais dinâmica  militância de acção. Ecoam aos meus ouvidos a definição clássica do processo educativo e da condução dos povos - fortiter ac suaviter – com firme suavidade. Ou ainda o veredicto do marechal Costa Gomes, aquando da Revolução dos Cravos, “a legalidade revolucionária”.
         Ultrapassando a preciosidade da forma e entrando no fundo ideológico do Papa Francisco, razões tem ele para agitar a consciência social dos nossos tempos e denunciar a “descaracterização do Natal”, fenómeno que se tornou viral, senão mesmo vazio e contraditório. Chega de olhar apenas o “Bebé numas palhinhas estendido, numas palhinhas deitado”. Nele está o Grande Caminheiro, abrindo as portas do futuro comum, os “Caminhos de Belém”. Nele, o Reformador da Humanidade. Nele, o Homem Livre que pagou com o sangue a factura da sua Liberdade. Diante do presépio, batem no meu peito as palavras de Louis Pasteur (cito-as em todos os baptismos): “Diante de uma criança sinto-me cheio de ternura por aquilo que ela é, mas cheio de respeito por aquilo que poderá vir a ser mais tarde”.
         Papa Francisco, em dois vocábulos, sintetiza a grande enciclopédia inscrita na gruta da natividade: Ternura Revolucionária. Duas palavras que valem uma encíclica. E que encerram a convocatória de mobilização universal em defesa da nossa Causa Comum!

         27.Dez.17
         Martins Júnior

        

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