quarta-feira, 29 de novembro de 2017

NUM HOMEM SEM ROSTO – O ROSTO DE UM POVO

                                                               

Atravesso o paralelo “29” e piso o solo aventurado do dia último do mês de Novembro. Na mesma viagem levo comigo 244 anos de história. Porque venho saudar a “Pátria do Autor” e a “ extensa ribeira preguiçosa”, em cujas margens ele viu “a primeira luz do sol sereno em pobre, sim, mas paternal morada”.
         Todo o bom patriota, nascido em Machico, conhece de cor – e de coração – esta toada  encomiástica e, ao mesmo tempo, plangente  que Francisco Álvares de Nóbrega dedicou ao seu torrão natal. É dele que me ocupo nesta noite,  da sua memória e, sobretudo,  do seu ‘lugar’ nos anais da freguesia, da ilha e do próprio país. Quando me refiro aos anais históricos de Machico, da Madeira e de todo o Portugal, não evoco a letra do texto escrito, porque a personalidade do “Nosso Camões” ou “Camões Pequeno” não coube nas páginas impressas dos arquivos. Durante quase dois séculos mãos daninhas encarregaram-se de apagar o seu nome. Nem um simples registo fotográfico nos ficou, para que, ao menos,  pudéssemos vislumbrar no seu rosto o brilho incandescente que trazia no peito.
         Dessa chama interior brotaram as cintilações dos seus sonetos e, mais do que isso, firmou-se a marca distintiva da época em que viveu. À produção literária que chegou até nós, a “EFAN- Estudos Nobricenses” tem dedicado diversas iniciativas, publicações, saraus proclamatórios e representações dramatúrgicas, ao longo dos anos.
         No entanto, importa-me sobremaneira, nesta data, detectar e relevar o impressivo lugar que Francisco Álvares de Nóbrega deixou na História. Tanto mais que foram exactamente esse ‘lugar e a sua intervenção que motivaram o esquecimento a que foi votado pelos sucessivos  regimes que governaram o país e, por consequência, a ilha. Não abundam  referências precisas ao conspecto sócio-político insular, durante três séculos e meio após o achamento  daquela “que do muito arvoredo assim se chama”. Muito espólio se perdeu na voragem dos incêndios e das aluviões. Entretanto, chegando aos finais do século XVIII, princípios do século XIX, um padrão luminoso se acende no oceano da semi-obscuridade dos acontecimentos: é um jovem, nascido em Machico no dia 30 de Novembro de 1773, de nome Francisco André Álvares de Nóbrega. Neste ligeiro apontamento (que terá, a seu tempo, novos desenvolvimentos) pretendo chamar a atenção e sensibilizar a opinião pública para a real caracterização de uma época trepidante, como foi a da transição dos ´séculos XVIII-XIX. Nesse canal tumultuoso mas brilhante nasceu, viveu e finou-se o “Nosso Camões”. A sua vida e a sua obra  corporizam a síntese e o símbolo vivo das contradições entre o conservadorismo mais repressivo e o clamor vitorioso dos ideais da Revolução Francesa. A inquisição, de um lado, e a Maçonaria, de outro, digladiavam-se encarniçadamente. Era o estertor do poder absoluto face aos ventos da liberdade que sopravam de Paris.
Francisco Álvares de Nóbrega incarna esse turbilhão cultural, religioso e, por arrasto, social e político. É por isso que a sua poesia não é inócua nem, muito menos, romântica ou licorosa. Ela reflecte o país e as instituições em aceso litígio público, de que resultaram vítimas indefesas, entre as quais, o próprio poeta que acabou por sofrer os “ferros sórdidos” da cadeia do Limoeiro, em Lisboa, às ordens da “Santa Inquisição”. Estudar e dar a conhecer Francisco Álvares de Nóbrega é abrir a enciclopédia de uma das fases mais incisivas da ilha e do país.
Por isso, o meu regozijo e  o meu apelo. Sabendo que as ‘forças vivas’ de Machico – à cabeça, a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia – preparam um expressivo programa dos “600 Anos do Descobrimento”, recomendo o estudo acurado de um dos capítulos mais sugestivos do nosso passado e a  inclusão de Francisco Álvares de Nóbrega como protótipo emblemático dessa mesma época.
Mais que uma homenagem ou deferência académica, é um dever imperativo que impende aos ombros da nossa geração.

29.Nov.17
Martins Júnior  

    ’ 

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

“DORES DO PARTO” – E BONS NASCIMENTOS!


“Nada de humano me é estranho”. E eu retomo o pensamento do grande Aristóteles  para pluralizá-lo (deixem passar o neologismo) traduzindo-o numa linguagem global: Nada do que é humano nos deve ser estranho.
         É nesta premissa que me apoio para apreciar a lufa-lufa das diversas formações partidárias na preparação dos respectivos Congressos e, preventivamente, na escolha dos seus líderes. Antes de mais, É de saudar esta movimentação, nalguns casos até, esta agitação das águas para não deixar estagnar a mística crepitante que deve animar toda a militância política. Desejável seria que os manuais de estratégia interna não resvalassem para os libelos fogosos das lutas externas, ou seja, que a descoberta do Melhor à cabeça do partido ultrapassasse a rasteirice, sempre censurável, da ganância do poder a qualquer preço. É neste escolho rochoso que esbarra a escolha do líder, impedindo de chegar à foz  o livre curso de critérios limpos e seguros, condição ‘sine qua non’ de uma boa opção. E, neste âmbito,  incomodam, magoam a sensibilidade do cidadão comum ver, ouvir, ler certa literatura quase deprimente (pode tirar-se  o ‘quase’) entre candidatos e respectivas hostes. Isto cá e lá, lá e acolá, em Portugal e fora dele - neste, nesse, naquele e ainda naqueloutro partidos. Pela minha parte, desisto de pousar os olhos em certos nacos de novelas de cordel político intra-partido.
         Na mesma medida também, cheira a proselitismo barato, para não dizer charlatanice de feira, acenar ao vulgo com os retalhos do lençol sebastianista, o mítico espantalho de uma estirpe privilegiada, quais arcanjos extraterrestres brandindo a espada flamejante nas trevas da noite . “Este é que é o tal, este é que vai salvar o beco, a vila, a cidade, o país, o mundo”.
        
         A este propósito, nunca é demais acautelar-nos contra as erupções alarmistas, porque nunca em tempo algum uma sociedade pode viver em constante clima de perturbação sísmica. Se em determinados – raros! – períodos tumultuosos da história é necessária a aparição de um líder anormalmente carismático, manda a experiência constatar que não deve ser esse o chão onde queremos construir a nossa casa. Aliás, os auto-cognominados homens ou mulheres de eleição laboratorialmente e bacteriologicamente virginal identificam-se logo pela sua peculiar táctica de ataque, com processos rápidos, pré-concebidos a-papel-químico, intempestivos e galopantes, como quem quer afincar em Marte a primeira bandeira!
         O eleitor atento distingue claramente a vocação governativa de um partido através dos processos visíveis da eleição do seu líder. Quando vislumbra, mesmo à distância, a instabilidade de uma liderança candidata cujo único objectivo é saltar para o pódio,  ainda que tenha de perturbar a paz evolutiva e o normal crescimento dos resultados obtidos na luta política externa, aí o eleitorado adivinha uma governação insegura e sem credibilidade. Ao contrário, porém, quando a candidatura assenta em provas dadas e êxitos políticos já alcançados, a população confia esperançosamente  nas linhas  programáticas de um futuro governo.
De “Salvadores da Pátria” – livrai-nos, Senhor. Uma boa proposta de oração, que equivale a estoutra: “Dos Tarzans espadaúdos, caídos do céu  – Credo, Abrenuntio”. Porque já os conhecemos pelo seu histórico horrendo, desde Hitler a Estaline, de Salazar a Franco, de Piongiang a Trump. Foram considerados os maiores, os salvadores. Salvador carismático foi também Cavaco Silva, no famoso Congresso de Aveiro. E viu-se o ‘lucro’ para o país.. Eu sei que esses espécimens não deitaram grão nos nossos poios,  mas mutatis mutandis já conhecemos alguns sósias nesta ilha, como no longínquo Zimbabué, que governaram ambos durante uma ‘eternidade’ de 38 anos, cada qual  no seu Reino.
Felizmente que essa raça está em vias de extinção. Mas, para isso, é urgente que os partidos marchem na vanguarda desta nobre campanha: escolham as respectivas lideranças por critérios ponderosos, inclusivos, expurgados de interesses de mercearia ou oficina de tachos efémeros  (como são os da política, todos a-prazo) mas sim  de olhos postos no amanhã das comunidades. Ganhar não é tudo. Consolidar, precisa-se.
E isso só se consegue com conhecimento e competência. Que são os dois pilares da  credibilidade, tanto a do líder como, sobretudo, do eleitorado. Deixo, pois, estas legítimas impressões a todos os partidos, da Região ou do Continente. Eles também lá andam com as dores do parto.  Digo “legítimas” impressões, porque saídas de quem viu e sentiu o “espectáculo  ao vivo”, ao longo de muitos anos.  E também porque interessa-me acompanhar e, se possível, influir positivamente nestes processos, dado que é dos líderes eleitos que sairão os potenciais governantes da minha  Ilha e do meu País. E isto interessa,  deve interessar a todos os que ganharam responsavelmente o seu estatuto de cidadania.
Boa sorte a todos. Porque também será essa a nossa sorte!
         27.Nov.17

         Martins Júnior

sábado, 25 de novembro de 2017

CHUVA EM PROSA: SEM RIMA NEM PRECE

                                  
      Venho hoje decifrar a “SERENATA À CHUVA”, que  anteontem deixei neste mesmo lugar. Porque nem sempre a linguagem elíptica do poema traduz a verdade cirúrgica, imersa na metáfora, permitam-me este regresso à chuva na prosa dos dias. Um regresso que tem cinquenta e mais anos, neste preciso 25 de Novembro.
Ao  ler em toda a imprensa portuguesa a evocação desta noite de 25 para 26 do ano de 1967 e da tragédia provocada pela tremenda aluvião que desabou sobre  Lisboa,  censurei-me a mim próprio pelo completo alheamento da catástrofe, enquanto na metrópole (assim se dizia então) centenas de vítimas eram arrastadas, afogadas, no turbilhão  das águas diluvianas. Foi há 50 anos. Estava eu e estavam milhares de homens noutras torrentes, algumas ensopadas em sangue, na guerra colonial. A nenhum de nós chegou a notícia da tragédia de Lisboa. E concluo: o poderoso sufoco da ‘Censura’ salazarista que escondia maquiavelicamente a informação – a de cá aos de lá. E a de lá aos de cá!
Estranho paradoxo! Há 50 anos, os portugueses gritavam esmagados pelo fragor das águas em catadupa. Hoje, gritam os portugueses, os campos, as barragens, os animais pela falta delas! “Vejam agora  os sábios na Escritura que segredos são estes de Natura”, exclamaria hoje o nosso épico. (V,22)

 Enquanto o cidadão mais avisado aponta o dedo também ao abuso humano da atmosfera e à passividade de entidades públicas e privadas face às alterações climatéricas, regista-se o esforço ingente de quem tenta matar a sede às populações, recorrendo ao transporte ininterrupto de água em autotanques. Enquanto  isso e após meses de extática contemplação, surge a inspiração do alto, ditada  pelo báculo cardinalício do Patriarcado de Lisboa: REZAR PELA CHUVA. Mais abaixo, no Alentejo profundo, um grupo de crentes organiza a procissão de Beja, impetrando dos céus a bênção da cobiçada chuva, maná deste tempo de seca severa. Pelos vistos, a prece de Beja parece ter sido ouvida mais depressa que a de Lisboa. Só agora é que chegaram alguns pingos das alturas e com esta bizarra contradição: os do norte (que não rezaram) tiveram direito a uma ração mais vantajosa que os do sul, pois a estes só lhes coube o suficiente para continuarem secos os campos.
Sabendo que esta minha reflexão será objecto de críticas e duros ataques, entendo usar o direito de expressão para limpar o ar que respiramos, identificando espessas nuvens de superstição e obscurantismo, ao mesmo tempo que sejam postas no seu devido assento as realidades, tanto as terrestres como as extraterrestres. Por respeito aos homens e aos deuses.
E por mais devoto que pareça, não deixa de ser um abuso chamar à querela quem nada tem a ver com ela. Além de que demonstra um perigoso exercício de inércia intelectual persistir em práticas obsoletas, porque baseadas na mais grassa ignorância científica e religiosa. Não temos o direito de considerar Deus como um ‘levadeiro’ de serviço ao domicílio, da mesma forma que outros querem tê-lo como ‘bombeiro’ na hora ou ‘artilheiro’ nas suas guerras domésticas. Era essa a concepção do povo judaico do Velho Testamento, contrária à mensagem de Cristo. Quanto à ordenação planetária e à Natureza, Deus concedeu-lhes autonomia de movimentos, outorgando ao homem este solene mandato: “Dominai a Terra” (Génesis, I,28).
Quem leu a entrevista do Cardeal Vingt-Trois, arcebispo de Paris ao jornal Le Figaro (que comentei no blog de 13/11/17) terá reconhecidamente fixado o seu pensamento: “Pela minha educação e pela minha história pessoal, não atribuo a Deus os acontecimentos do mundo. A Criação foi uma ‘aventura’ que Deus entregou à sabedoria do homem”. Nada mais sábio e clarividente! Afigura-se um grave atentado a Deus e ao homem interpretar o mundo e as suas rotações com critérios medievais, puramente empíricos, tal como os marinheiros das naus ‘viam’  nos relâmpagos o “Fogo de Santelmo”, a intervenção de São Pedro Gonçalves Telmo, padroeiro dos homens do mar. (Lus. Canto V,18). Mais grave e criminoso é iludir o povo a quem se subtraiu o direito à cultura e à informação histórica.
Até onde poderia levar-nos esta reflexão?!... Basta pensar na tragédia do Monte, em 15 de Agosto pp.. Não há aí quem tenha a coragem de interpretar os sinais dos tempos e as encruzilhadas da fé?!  É uma exigência irrenunciável impedir que se exponham ao ridículo realidades supremas, sobretudo em relação à crença religiosa. Não se chame Deus a responder onde Ele não é chamado. Haja respeito!
Sei do que falo. Experimentei-o, ao vivo. Também há cinquenta e mais anos, em 1964, no Porto Santo. Não choveu durante oito meses. Em Março, o trigo mal saía da terra, à míngua de água. Três dias e três noites fizemos peregrinação à capela de São Pedro. E ao terceiro dia, a terra ressuscitou com as chuvas copiosas caídas das nuvens. “Milagre” – diziam-me as pessoas, de braços abertos. Mas, no meu íntimo, pesava-me esta incógnita: “Será Deus tão sádico que nos obrigue a sofrer tanto e a ajoelhar rudemente  para nos socorrer?... A resposta é NÃO!
Termino esta reflexão (mas não lhe fecho o percurso) com um excerto do livro do Padre José Luís Rodrigues – “O QUE A FÉ NÃO DEVE SER”, – no capítulo “A Fé não é um guarda-chuva”, publicado em 2013:           
         “Muita da dor provocada pelas tragédias resultam da irresponsabilidade, da incúria, dos desmandos, dos abusos, da violação dos espaços e das regras das forças da natureza. Então, temos a factura que a natureza nos envia carregada com valores elevados de destruição, desolação, sofrimento e morte”.
         Perfeito!


         25,Nov.17
        Martins Júnior

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

SERENATA À CHUVA




Fio de água – o Desejado
Chuva gratuita - a Cobiçada
Mais que todos os tronos e todas as mulheres

Mas tu só chegas quando queres

Nem o grito nu das albufeiras
Nem os lábios gretados dos pomares
Te comoveram

Nem os troados esgares
Com que os humanos ódios
Destroem ares e mares
Te abriram  um só dos capilares

Oh quantas lágrimas terias enxugado
Com a líquida toalha da tua mão
E quantos mortos ressuscitado
Com o sudário do teu pranto

Mas em vão

Porque não desceste
Nem ouviste sequer
As asas sonantes impetrantes
Das púrpuras cardeais
Mais as preces dos ingénuos mortais

Chuva-macho que fecunda
O terro-fêmea que lhe mata a sede
E abre-se em pão azeite e malmequeres

Vem quando quiseres
Como nesta vigília
Cantante miudinha
Em que te escrevo esta balada-mágoa
Molhada no fio de água
Que me deste

23.Nov.17
Martins Júnior

terça-feira, 21 de novembro de 2017

SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS NUM MESMO CORPO DE LISBOA




Nada melhor que uma antítese para consolidar uma síntese. É, por isso, um privilégio inestimável quando a mesma paisagem, a mesma instituição ou o mesmo problema se nos apresentam do avesso e do direito, de um ângulo proposto e do seu oposto, ou seja, quando analisamos  a realidade nos seus múltiplos contornos.
Esse prazer-valor acrescentado foi-me dado viver em dois momentos marcantes deste fim de dia, 21 de Novembro. O primeiro,  na Aula Magna da Universidade Clássica de Lisboa e o segundo, na Associação José Afonso, também na capital.
No primeiro e fazendo jus ao cenário onde tudo ocorreu, a cerimónia brilhou pela magnitude do ambiente, pelo auditório, pelas personalidades intervenientes em palco. Foi a apresentação oficial do "PORTUGAL CATÓLICO", um requintado volume de 800 páginas, edição do "Círculo de Leitores", patrocinado pelo dono do 'Pingo Doce' ali presente e repetidamente incensado por todos os oradores e apresentadores. O recinto tinha tudo de imponente, academicamente enfático, as instituições (de toda a sorte, políticas, culturais, confessionais)  rigorosamente representadas e assentadas em lugares segregados, os discursos vários, tudo sobredourado pelas primorosas  actuações de Cuca Roseta, Rão Kiao e Teresa Salgueiro. A coroar o magno evento na Magna Aula subiram ao palco os também magníficos Sua Eminência o Senhor Cardeal Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa e Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Foi uma esplendorosa entronização da Igreja Católica numa universidade laica, os seus valores, os monumentos históricos, os rituais pontificais e processionais projectados nos écrãs, os mais proeminentes titulares clericais, enfim,  os contributos eclesiásticos para a construção deste Portugal de nove séculos. Monumental a obra e não menos o espectáculo de lançamento público.

Mais adiante, ao fim da Rua de São Bento, de outros mundos se falava, embora radicados no mesmo tronco institucional, a Igreja. Era uma homenagem a um grande obreiro daquela casa, o falecido Alípio de Freitas. A casa é a sede da AJA - Associação José Afonso, cujo espírito pairava naquela sala, onde amigos comuns confraternizavam sob a memória de Alípio Freitas, para quem o mesmo Zeca Afonso compusera, em 1981, uma das mais expressivas baladas. Homens e mulheres, jovens e adultos, do continente e ilhas, cercados e unidos pelo cículo luminoso da liberdade, evocaram o grande amigo e lutador Alípio. Tudo muito singelo, autêntico, libertador. E comovente: ali presente a viuva Guadalupe e sua filha Luanda.  Mais emocionante foi ouvir a belíssima voz desta jovem, acompanhada pelo exímio 'baixista' Norton, seu marido. Sobretudo quando cantou a balada que Zeca Afonso dedicou ao pai Alípio. A encerrar este encontro, modesto na forma, mas enorme no conteúdo, Francisco Fanhais, actual presidente da AJA e a celebrar 50 anos  de percurso musical, deixou-nos a grande mensagem sonora da sua "Utopia".
Que terá ver este segundo 'acto' com o primeiro, da Aula Magna? Por outras palavras, que tangência têm os dois 'actos' com a instituição Igreja?
É o que importa esclarecer e é também a razão de ser deste escrito. A coincidência que abrange os dois momentos está aqui: ALÍPIO DE FREITAS foi padre da Igreja Católica, ordenado em Bragança, onde exerceu o múnus de pároco e director da Escola de Artes e Ofícios. Tocado pelo autêntico espírito missionário, emigra para o Nordeste brasileiro. Lecciona na Universidade de São Luis do Maranhão, mas era mais forte o apelo pelo campesinato explorado. Fundou a Associação dos Trabalhadores Agrícolas e associou-se às Ligas Camponesas. A sua acção em prol das populações injustiçadas estendeu-se ao Rio de Janeiro, em plena ditadura militar. Foi preso e torturado durante vários anos, como relata o seu livro "Resistir É Preciso".  Entretanto, fustigado pela justiça do Exército e pela incompreensão das hierarquias eclesiásticas, abandona o sacerdócio para dedicar-se mais intensivamente à sua missão de líder social. É tremendamente assustador o seu relato quando foi preso com a esposa e a filha, de um ano de idade - a mesma jovem que hoje cantou na casa da AJA!..
Moçambique, Lisboa, RTP, Universidade Lusófona, foram outras das várias instituições onde exerceu funções, após o 25 de Abril de 1974. Um herói que depôs as armas aos 80 anos de idade! E para sempre ficou no grande pódio dos vencedores da vida: o coração e a mente dos amigos que hoje se reuniram em sua memória.
Deixo a quem me lê o cotejo dos dois acontecimentos da tarde de hoje. Lá em cima, o espectáculo, a entronização.  o clangor triunfalista da Igreja institucional. Cá em baixo, a convicção, a autenticidade, a consonância fraterna e mobilizadora de Alguém que incarnou a Igreja vivencial, exclusivamente comprometida com as raízes do humanismo evangélico. Para mim, a humilde 'mansão' de Zeca Afonso em dia de ALÍPIO FREITAS excedeu em magnitude essencial a majestática Aula Magna do "Portugal Católico".

21.Nov.17
Martins Júnior