quinta-feira, 31 de agosto de 2017

ENTRE O AGOSTO GOSTOSO E O SETEMBRO BRUMOSO…


Atravesso a ponte – o longo e largo passadiço que começa pelo fim e acaba no princípio – entre o “31” de hoje e o “1” de amanhã. Não sou mais que um transeunte dentro da multidão anónima. Todos deixaram na outra margem a quietude sonâmbula dos dias e das noites sem ponteiros. E agora apetrechamo-nos para alcançar o ilhéu de nuvens, do tamanho do mundo. Aí   acordaremos para a prosa corrente das horas repetidas. Quando lá chegar (e amanhã será) contar-vos-ei o que os meus olhos vêem e a minha mão escreve na ponte ímpar entre duas margens…

31.Ago.17
Martins Júnior  


terça-feira, 29 de agosto de 2017

A CADA QUAL - SEU FESTIVAL

          

          Diz-me qual é o teu – e eu dir-te-ei quem és.
Podia ser assim o subtítulo deste passatempo breve. Breve e, em hora certa, divertido. Aproxima-se o fim do mês ‘gostoso’, onde é rainha a ridícula silly season, com entrevistas de cordel, areias cor-de-rosa na praia dos jornais, reportagens “chapa-seis” que dão para qualquer locutor preencher de mais vazio o vazio da estação.
Nem é preciso simular. Basta reproduzir. O jornalista, entre  saltimbanco e ‘franco atirador’, enguia-se pelos apertos do arraial e pergunta: “Então, está a gostar?... De onde veio?... Algum compromisso especial”? E a resposta é pronta: ”Vim da Venezuela (do Canadá, da Austrália”), cheguei ontem e vim comer e beber no arraial”. O homem do microfone joga-se para a porta do estádio e faz o passe ao nosso emigrante: “Então, aqui? De onde é que veio e para quê”? E o ‘instrangeiro’ marca logo: “Venho da América, andei mais de 3.000 Km para ver o Portugal-França”. Mais modesta e composta, a estagiária na “TVerão”, mete-se na procissão do norte da ilha: “E a senhora, foi a fé que a trouxe?... vem de longe”?  E a devota, de mantilha piedosa a cobrir cabeça e ombros,  balbucia: “Vim da África do Sul pagar (!!!) a promessa ao Senhor Bom Jesus (ou à Senhora do Monte, ou à do Livramento ou a Nossa Senhora do Calhau, tanto faz)”.
Três motivações, qual delas a mais distante uma da outra. Mas há mais. Os que planeiam o ano inteiro para chegar mais cedo ao palco da Zambujeira do Mar, de Vilar de Mouros, do Rock in Rio, de Coachella Fest na Califórnia. Até  o mais rasteiro ‘alibabá’ não larga a vida sem ir a Meca. E os ungidos do óleo pascal juram que não morrem sem ir a Roma “ver o Papa, que é Deus na terra”.
O mercado é enorme, não conhece fronteiras e o seu limite é igual à desgarrada imaginação de cada qual. Uma, porém, deixou-me de bruços, dependurado numa incógnita insuperável. Foi aquele casal, emigrante há mais de trinta anos num ‘país capitalista’ (assim mo disse)  que todos os anos programa as férias para estar presente na “Festa do Avante”. E lá vai ele, asinha, para a Atalaia do Seixal. Dispenso-vos, ‘kamaradas’ ilhéus, de quaisquer emolumentos por este naco de propagandazinha cunhalista. Quão diversa é a meta deste cinquentão e sua esposa, se a compararmos com as restantes”!
Sem contar com o grosso daqueles “que vão a todas”, um aspecto salta, incontido e decidido, deste confuso emaranhado: é a militância com que cada um se deixa seduzir  (eu direi, narcotizar e, nalguns casos, alienar) diante do seu craque, do ídolo ou do cromo que entronizou como deus na ara do seu culto.
 Sem entrar em altas incursões sobre a sociopsicologia do fenómeno, não estaremos longe do alvo se considerarmos o “Festival” (nos casos citados)  como o barómetro do indivíduo e da sociedade a que pertence. Nesta onda, faço um stop para olhamo-nos um em frente do outro: “E qual é o teu Festival, real ou imaginário…e o meu…e o do meu meio”?
Xavier de Maistre, desde há duzentos anos que nos vai ensinando a arte e a ciência de viajar até onde quisermos… dentro da nossa própria casa. A Viagem à volta do meu Quarto é bem a paradoxal  conclusão de que somos nós os timoneiros da insondável circum-navegação da nossa vida. Nas nossas mãos o leme, o horizonte, o porto de chegada. Lembrando Pessoa – “A Minha Pária é a Língua Portuguesa” – direi que a Pátria-Mátria de cada um é lá onde está o gosto, o apetite, o sabor e a consequência das suas opções.
Festivais! Diz-me qual é o teu e eu dir-te-ei quem és.  Educar-me  para um “Festival” maior. Eis o sumo do meu Luar de Agosto.

29.Ago.17

Martins Júnior

domingo, 27 de agosto de 2017

A POSITIVA METAMORFOSE DAS TRADIÇÕES


Viva a Vida!
Pego na chama acesa com que fechei a simulação – a um tempo, humorística e séria, muito séria – tirada do obituário que a imprensa reproduz todos os dias com nomes iguais ou diferentes do nosso. Hoje, é a Vida que me interessa. Vê-la saltitante como um pássaro e crepitante como um facho de luz nas nocturnas encostas do vale.
´Nesta noite não saio da ‘minha’ capitania de Machico, pioneira dos capitães donatários da ilha, há seiscentos anos.. Alargo os olhos e deixo entrar as fogueiras estivais que neste sábado alumiaram as rochosas e seculares montanhas da minha terra. Para quem as vê pela primeira vez, fica extasiado. Quem as repete duas ou mais  vezes será tentado a bocejar, desconsolado: “ mais do mesmo”.  Engano. A tradição dos fachos é sempre nova e rediviva para as gentes de Machico. Há quase oitenta anos que os acompanho desde criança e acho-os tão cativantes como desde a primeira hora. Mais renovada e mobilizadora é a tradição para a perto de centena e meia de mãos, todas jovens que arduamente se levantam até aos altos socalcos previamente preparados para o grande anfiteatro luminoso de Machico. Honra e valor a essa juventude que mantém acesos não apenas os fachos mas a memória dos seus antepassados.
Entretanto, desbravemos as remotas veredas da história e lá encontraremos, decepcionados, a genuína identidade dos fachos. Aquilo que hoje nos delicia e aquece a sensibilidade, afinal, nasceu num temeroso ambiente de roubos e predações que com que os corsários e piratas dos mares amotinavam os incautos habitantes das ilhas. Para defender-se dos invasores, usavam como meio de comunicação nocturna o lume vigilante  nos picos estratégicos do território, a fim de que as vilas e aldeias preparassem a defesa, quer munindo-se de armas artesanais, quer fugindo para as furnas situadas nas serras. Aqui radica a toponímia de alguns desses picos, como o Pico do Facho em Machico e o Pico do Facho no Porto Santo.  
Depois, fortificadas as ilhas e debandados os corsários, o povo deixou-se fascinar pelo sortilégio das chamas desenhando a silhueta das montanhas. E continuou a acender fogueiras. Fez a catarse do medo com a metamorfose do lume vivo: o fogo já não era o alarme convencional contra o terror mas uma homenagem a uma divindade, neste caso,  o Santíssimo Sacramento.

A espantosa imaginação popular que do medo fez beleza e  encantamento! Não fossem os corsários da costa e hoje não teríamos os fachos, ex-libris de Machico, na “Festa do Senhor”, último domingo de Agosto!
Não é caso único na historiografia do Cristianismo. São inúmeras as tradições e rituais pagãos, desde Grécia a Roma, que a Igreja oportunamente (e oportunisticamente também) acolheu e deles se apropriou para dar-lhes uma nova veste, sacralizando assim as grandes festas pagãs em homenagem aos deuses, porque tais festas mantinham-se  ainda arreigadas nos povos convertidos. O caso mais flagrante cinge-se ao Dies Natalis, o Natal cristão, que teve origem nas famosas Saturnália, festas dedicadas ao deus Sol sob o signo de Saturno, realizadas pelo Império Romano  entre 17 e 25 de Dezembro. Só a partir do século IV, a Igreja ‘canonizou’ os costumes pagãos em honra do deus Sol, substituindo o Sol pagão por Jesus Cristo que passou a designar-se por Sol Justitiae, Cristo - Sol da Justiça, como se canta nas antífonas.
Muitos outros rituais poderia citar. Mas aqui o que importa relevar é a vantagem filosófica e prática de não arrasar liminarmente as tradições populares. Se elas se identificarem com a idiossincrasia de um povo, é sensato preservá-las, segurando o que de valorativo possuírem e, se algo de menos digno ou anacrónico comportarem, a solução será a de operar-lhes uma metamorfose interpretativa, transfigurando-as e imprimindo-lhes um carácter nobilitante, actual, construtivo. Neste caso, suponho poder aplicar-se o princípio geral do Direito: Pacta sunt servanda, os pactos ou os acordos devem ser conservados, cumpridos. E as tradições também.
Muito longe levar-nos-ia esta tese. Em vários quadrantes da sociedade. Por hoje, a convicção de que valeu a pena conservar a tradição originalmente radicada nos assaltos dos corsários da costa, para que o nosso olhar se enchesse da luz envolvente do vale de Machico, com “Os Fachos na serra, Altos a brilhar”. Ontem, hoje e amanhã.

27.Ago.17
Martins Júnior

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

CARTA DO OUTRO MUNDO


"É do fundo da terra - ou das intocáveis alturas, tanto faz – que vos escrevo. Sem minha autorização estenderam ontem o meu nome numa prega de jornal, embrulharam-no e  atiraram-me para a vala sem regresso. Antes, porém, tiveram a preconceituosa devoção de me rezar ofícios em cerimónias fúnebres molhadas de água benta.
E ‘práqui’ estou. Abri de novo os olhos que os familiares me fecharam, reanimei as mãos e os dedos e eis-me neste miradouro subterrâneo de onde tudo se vê. É daqui que vos vejo a todos e vos escrevo.
Agradeço, em primeiro aceno, a horizontal posição em que me colocaram no esquife. Porque, agora sim, tenho ‘todo o tempo  do mundo’ para olhar os altos, deliciar-me com as colunas milenares das montanhas da minha ilha, descansar as pupilas nas estrelas, ir mais além e mais acima do que quando estava convosco. Esse foi o tempo em que os olhos me pendiam para o chão rasteiro do quotidiano, os meandros sinuosos, as nervuras interesseiras, as intrigas, os fogos fátuos de fugazes prazeres. Percebo agora, a olho-nu, que em mais de metade da vida, as pessoas  são consumidas inutilmente no rescaldo baço de incêndios que outros atearam. Faltou-me o ar puro da razão prática para desenlear-me das muitas teias de aranha em que, distraído e ingénuo,  me deixei enredar.
Nesta cidade onde cabe todo o planeta e onde todos vós tendes apartamento marcado, a paz serena advém de um outro reino, cuja constituição tem um Artigo Único: ”Aqui todos são iguais. Inelutavelmente”! Ditoso império da igualdade congénita, onde não há palácios nem casebres, não há bancos nem falências, não há brâmanes nem párias, senhorios e caseiros, exploradores e explorados. Aqui descobri, tal como  o velho Diógenes da Antiga Grécia, que não há diferença alguma entre a ‘caveira’ do meu pai pescador e a ‘caveira’ do  armador, patrão, ditador, papa ou rei. Nenhuma, além desta: o operário, mesmo pobre, sorri sob o lençol com que a mãe-terra o abafou, enquanto o agiota, avarento e sôfrego, geme sob o peso das barras de ouro que deixou  no rez-do-chão da  sua mansão.
Não acabarei esta carta breve – mais breve que a própria vida – sem confidenciar-vos mais uma descoberta. É que, agora vejo, tudo quanto foi meu enquanto por aí andei teve apenas uma função: o valor instrumental. Talvez que ainda não tivésseis dado por isso. Casa, carro, livros, euros, lati-ou-minifúndio, poder, galões, comendas – tudo, tudo não passou de um instrumento funcional, uma ferramenta emprestada. Queiramos quer não, o instrumento passará para outras mãos, a ferramenta será dada a outro utilizador. Também provisório, a prazo, sem saber se é longo ou curto. Nada foi meu e tudo será de outros.
Falta-me ainda dizer, sem ser preciso adivinhar, que se alguns ficaram tristes com a participação da agência funerária, outros terão sentido um gozo libidinoso com a notícia. Mal sabem – saberão quando aqui chegarem – quanto me divirto com tudo isso. Cá os espero.
À moda de testamento (não me deram tempo de fazê-lo) juro que teria dispensado anúncios e participações, romeiros oficiais e oficiantes, espectáculos, turíbulos de incenso, lânguidas ladainhas  policopiadas. Aqui, o Justo Juiz deste Super-Supremo declarou-me que não aceita cunhas nem advogados nem alegações finais. Sou eu que trago tudo isso comigo. Mais ninguém!
De Profundis, Valsa Lenta -  estou contigo, irmão Cardoso Pires. E como tu, eu vou subir os degraus desta cidade submersa. E voltarei, como tu, transportando nas minhas mãos o Código das Profundezas onde me deitaram. Reger-me-ei pelos seus sábios normativos, para implantar na minúscula  nesga do meu território o inalcançável Reino da Igualdade onde crescerão as violetas de uma  transitória Felicidade".
____________________________



E voltei, pessoal. Ainda não fui desta. Porque o “José Martins Júnior” da participação-supra não sou eu, mas um meu homónimo, que até hoje eu próprio desconhecia. Paz à sua alma. Agradeço-lhe a oportunidade que me deu de acompanhá-lo, assim, tão de perto, nesta sua viagem que um dia será minha. E nossa, amigos.
Viva a Vida!
25.Ago.17

Martins Júnior  

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

QUEM PERGUNTA?... QUEM RESPONDE?...

Não é mais que um desabafo, quase sem palavras, o que hoje vos trago. E é este: 
Desde o 15 de Agosto ainda não saí do Largo da Fonte. E ninguém de lá me tira tão cedo. Por onde quer que eu vá, estala-se-me todo dentro de mim aquele tronco secular.  No ‘Campo Santo’ de São Martinho, Monte ou São Gonçalo,  no cume das montanhas a arder, nos terramotos ou nas aluviões devoradoras de vidas e haveres, em tudo vejo o fantasma daquele Monte esmagador, intransponível. Quero ouvir-lhe a voz – depressão, prece, gemido ou grito – o que tem a dizer-me, a interpelar-me,  a responder-me.
Porque ele anda sempre a perseguir-me para exigir-me uma resposta. A mim e a todos aqueles que não se deixam submergir no desespero nem consentem embotar  o delicado tecido da sua sensibilidade. Mexe com todos nós, seres pensantes.
O que se tem visto publicamente não passa de uma arena de interesses marcados pelo mais cínico mercantilismo em que o que mais conta é o vocação de solteira, atribuída à culpa. Baixo, insensível, mesquinho e desrespeitador dos mortos!  Podem morrer cinco pais, mães ou crianças, dez, doze, treze: o importante é que a culpa não morra…solteira. Recuso-me a entrar por esse exclusivo pântano político, de um atroz oportunismo. A Justiça ditará. Inexoravelmente!
As perguntas e respostas que eu procuro são as que irrompem do chão onde se consumou a tragédia. Um chão sagrado, iluminado pelas sacrossantas velas das “promessas”, um encendrado voto de divino amor à “Santa Milagrosa”.  E a grande incógnita que me bate na mente e no coração é esta: Onde está Deus no meio de tudo isto?... Que estatuto ou que função desempenhou ali a “Sua Mãe”, Senhora do Monte?...
Interessam-me estas perguntas e dou tudo de mim a quem mas responda. Porque são de todos os tempos e lugares. Porque, sobretudo, ouviu-se a tremenda informação do Pontífice oficiante na tribuna do sacro altar da nossa catedral: ”Deus chamou a si esses nossos irmãos”!!!... Então, Deus estava lá!?... Para chamar treze vítimas inocentes!?… Mas, para isso, primeiro teve de chamar o velho carvalho adormecido nos jardins do esconderijo… Quem poderá suportar semelhante paradoxo?
Deixem-me dormir descansado esta noite. Vou parar, por agora. Mas sei que o que não vai parar  amanhã é esta luta interior. Porque, após quase oito décadas de educação religiosa acumulada, não quero morrer sem encontrar resposta  a esta pergunta: O que é que tem a ver a Religião com tudo isto? Estará a Religião casada com esta e outras tragédias… ou viverá eternamente solteira e protectora?...
Ajudem-me a encontrar um lampejo de luz serena e inteligível.  Porque vou continuar a escavar o sempre inacabado túnel da Vida e da Morte.
Que os que tombaram no ‘chão sagrado’ iluminem a obscura e breve estrada dos vivos. É a maior homenagem que lhes podemos prestar.

23.Ago.17

Martins Júnior     

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

NO DIA DA CIDADE: ERGUER CORAÇÕES MAIS VALE QUE LEVANTAR CATEDRAIS



Cidades são como pessoas. Corpos de gente como nós.
Tens uma célula dolorida e todo o teu corpo sofre e geme. Tocam-te a pupila dos olhos e, todo inteiro, vagueias entre sombras, tacteando labirintos nocturnos  em pleno sol do meio dia.
Para cantar 509 anos de nascença, o nosso Funchal não teve bolo nem velas. Só a cereja do velho tronco em cima de mãos e crânios aniversariantes, preparados para a boda. Toda a cidade emudeceu sob o cruzeiro de mil braços, caído na praça.  Os que ficaram de fora, como e onde encontrariam voz para cantar e ouvidos para escutar maviosas canções?!...
Mas é forçoso renascer em dia de aniversário, mesmo entre crepes encharcados de lágrimas. Como aquela mulher que os meus olhos viram,  a única sobrevivente da tríade familiar, os braços engessados, em cadeira de rodas, mas de face erguida, imóvel e serena como a estátua da dor, seguindo o rasto cruel do esposo e do filho-bebé na descida à sepultura! Aquela serenidade quase impassível e sempre impossível que só os grandes gritos de alma sabem guardar!
Levanta-te de novo, Cidade pentassecular! Assenta os pilares de outrora no basalto dos teus alicerces, como em 1803, como em 2010. Mais duro foi o golpe de 2017. Não em 3 de Outubro nem em 20 de Fevereiro, mas no portal de Agosto, na mesa do teus 509 anos!
Outras cidades sofreram iguais tormentos. Na velha Roma, ardia a ‘cidade eterna’ e o tresloucado Nero tocava harpa nos jardins do Capitólio. Não quero crer que haja um só cérebro paranóico que pegue um instrumento – harpa, piano ou tuba – e solte cínicas loas nas labaredas das serras ou no ‘Largo da Fonte’!
Na ínclita Atenas, capital da antiga Grécia de Sófocles, fustigada por sucessivas devastações, o Coro ululante dos Anciãos exigia a morte de Édipo-Rei  para que os deuses não fizessem  desabar toda a sua ira sobre o povo ateniense. Espero que Maria de Nazaré não prossiga a iracunda sentença dos velhos deuses pagãos, ameaçando mais castigos sobre o Monte e a Cidade, enquanto não lhe fizerem mais um apartamento na ‘Capela das Babosas’… E não há quem tape a pia boca bacoca que vomita tamanhas heresias!
 Um 21 de Agosto que, segundo os Anais da Cidade, nunca antes se vira! Inelutável e soturno. Porque não foram muros ou telhados, palácios, monumentos ou catedrais. Foram  Pessoas – Corpos e Almas – que têm dentro valores mais altos que a mais alta arquitectura. Para cavar mais fundo, foi a fatídica tragédia plantada num chão alagado da mais terna espiritualidade…
Aos familiares das vítimas, aos  construtores da Cidade, o Povo, e aos seus representantes, quero entregar este voto, como um patriótico  grito auroreal: : “Levantai agora, de novo, o Esplendor do Funchal” !
21.Ago.17
Martins Júnior


sábado, 19 de agosto de 2017

AO MESTRE DO HOMEM GLOBAL NO CINQUENTENÁRIO ALLELUIA 1967-2017

O Santuário da Senhora dos Remédios, em Lamego, foi o palco privilegiado para o Prof. Doutor Padre Anselmo Borges celebrar o Jubileu Sacerdotal do Cinquentenário da sua Ordenação. Em homenagem ao ilustre Mestre, missionário da “Sociedade da  Boa Nova” em Moçambique, laureado em Roma, Paris e Tubinga  e  Catedrático de Filosofia na Universidade de Coimbra, eminente teólogo na linha do Papa Francisco, transcrevo as palavras que lhe dediquei em 15 de Agosto de 2017:

O Douro das fragas quase infinito
Parou
E o gélido granito
Estremeceu
Quando um Rio Novo irrompeu
Do genesíaco seio de Resende

Mas o Rio Moço tinha mais sede
Que as terras de Resende

E fez-se ao mar
Içou as velas
Estendeu remos
Desafiou estrelas e procelas
Passou além do Bojador
Dobrou o Cabo das Tormentas
Porque o sonho era maior

E fez a ponte
Do Atlântico Mar
Ao Índico Oceano

Ó mítico terro moçambicano
Onde o Rio Novo
Achou aquela foz
Que lhe deu asas

Torna viagem e ruma
À velha Roma
Do Sacro Império severo e austero
Andarilho do Desassossego
Sobe à livre Germânia de Kant e Lutero

Torna viagem
Toca as margens do Mondego
Que tem mais encanto
Nas sábias lições do Mestre
Quando entrelaça o divino e o humano

Depois Madeira
Onde o anel ouro-Douro
É azul marinho sem termo, transfigurado
Ai o Rio Novo
Fez reflorir a Ilha do Basalto

Madeira e Resende
Se uma é o soprano
A outra é o contralto
Do cinquentenário Alleluia
Que Maestro Anselmo compôs
Neste seu, que é o Grande Dia 


Ao Prof. Doutor Padre Anselmo Borges agradeço a honra de ter-me associado a tão expressiva efeméride que reuniu personalidades de primeira água em Portugal, desde escritores, professores universitários, jornalistas e até políticos de diversos quadrantes, os quais marcaram presença genuinamente afectiva, pois que a maior credencial que apresentaram foi a amizade e a consideração para com Anselmo Borges. A mesma razão explica que no altar estivessem, não os dignitários eclesiásticos oficiais, mas os verdadeiros amigos, colegas no sacerdócio, o seu irmão mais velho, o Superior da Sociedade Missionária de Valadares, Frei Bento Domingues e a minha modesta pessoa. Por solidariedade com as vítimas  do Monte, deixei para hoje a presente publicação. Bem haja!

19-Ago-17
Martins Júnior


quinta-feira, 17 de agosto de 2017

NA HORA DA DOR E DO SILÊNCIO …



Descem à tumba
Os que o velho madeiro abraçou
No Largo da Bem-Aventurança


Descem ao abismo escuro
Os que subiram ao alto monte
Verde de Esperança


Descem ao berço comum
Os mártires da Fé
Que tudo crê e tudo alcança


Monte de lágrimas e contradições
Que dás
Em cada manhã  o sol da Paz
E pões
De luto e noite montes de gerações…


E o lenho novo
Que transportamos na lenta subida
Onde nos deixará
E em que tumba ficará
O berço comum da nossa vida?!...

17.Ago.17

Martins Júnior

terça-feira, 15 de agosto de 2017

REQUIEM


A morte vem do fogo a morte vem do verde a morte vem da água e não há mão nem Mãe que a sustem nem a dos Remédios onde estou nem a do Monte de onde sou.
Monte de lágrimas feitas de fogo verde e água.
1967-2017 cinquenta anos não apagaram a saudade dos onze sepultados na picada moçambicana.
15 de agosto dia da Assunção da 'nossa e outra' condição humana.

Lamego

Martins Júnior       

domingo, 13 de agosto de 2017

TRÊS MESES EM ALTA TENSÃO

     
    Se os decibéis sonoros  se transformassem em fogueiras (Vade retro, credo abrenuntio) podíamos pegar rastilho num qualquer lugarejo da ilha e teríamos durante 90 dias um poderoso anel de fogo na cintura, no dorso, da cabeça aos pés, desta paisagem estival em que se tornou a Madeira. Não se sai de uma aldeia, vistosamente engalanada, que não se entre noutra a abarrotar de gente envolvida ‘à sombra’ de plásticos multicolores que se abanam com o ribombar dos foguetes e os estridentes acordes do palco. O povo andarilho lá vai de poiso em poiso, ao toque do arraial e à pala do santinho ou da santinha, tantas vezes os mais desconhecidos da festa, mas que lhe dão uns salpicos de devoto conforto.
         São assim os nossos arraiais, rivalizando uns com os outros, quase numa corrida à camisola amarela. Dos programas publicados, lanço um olhar exclusivo sobre o panorama musical. A alegria exige animação, muita música, sob a batuta do ‘chefe de orquestra’: Façam barulho! É curioso observar, pelos anúncios públicos, que os géneros são muito similares, os solistas e respectivas bandas vão passando de um arraial para outro, chegando-se ao cúmulo que alguém exprimiu assim: “Basta ir a um só que fica tudo visto”. Referia-se à frágil, senão mesmo nula,  originalidade distintiva deste ou daquele lugar. Para desenfastiar, lá vêm do rectângulo os ‘cromos’ animadores das feiras, alguns até com uma salada pimba que revolve o debulho. E o povo gosta, diverte-se, esquece as pisadas da vida.
         Profundando a análise dos factos, não será difícil concluir que a falta de identidade característica que distinguiria uma festa da outra deve-se a  outra lacuna: a falta de criatividade participativa da população local na construção do seu programa de animação. A ausência do elemento Povo no palco varre todo o encanto típico daquela festa, por mais rica e espectacular que seja. O Povo demite-se e passa procuração a terceiros que nada trazem de representativo da sua terra. Dir-se-ia, à moda antiga, é a “mesma chapa seis” em todas as paragens.
         Longe de mim o culto de um regionalismo doméstico (paroquial, como  displicentemente classificam alguns) e, muito menos, qualquer sombra de menosprezo pelos artistas profissionalizados, de cá ou de lá. Aliás, em datas festivas, há sempre uns aperitivos diferentes da ementa quotidiana. Mas o que me parece indissociável da festa é o perfil marcante da sua população, coreografia adequada  e a produção literária autóctone dos poetas populares, que todas freguesias têm, particularmente nos meios rurais e suburbanos. E toda essa caracterização  visual ao serviço de conteúdos vivos, tocantes e quase sempre atractivos. Pela sua simplicidade e pela sua autenticidade. É isto que faz falta.
         Sem pretender ‘embandeirar em arco’ exclusivo uma localidade já conhecida na Madeira, apraz-me reconhecer e prestar homenagem aos mais de setenta participantes em palco, na última festa da Ribeira Seca, cumprindo uma tradição antiga. Os nossos ‘bailarinos’, desde os quatro e seis anos até aos de setenta (estes, antigos executantes de há quase cinco décadas) desfilaram em palco, cada qual com o seu traje diferenciado, idealizado por cada grupo ou sítio,  apresentando o perfil da população residente, as suas tradições laborais, os moinhos artesanais de outrora, o tear, as vindimas, os emigrantes,  as justas ambições dos jovens, enfim, fragmentos da sua história, traduzidos em canto e dança. Da enorme afluência de espectadores, ninguém arredou pé enquanto os nossos ‘artistas’ estiveram em palco.
           Festa é Festa – lá diz a velha cantiga. Desejável, porém, seria que a  festa não fosse apenas um narcótico barato, alienante, tão fortuito com o foguete que assusta o sol e fica logo em nada, estatelado no chão. O arraial bem pode ultrapassar a estaca rasca – “só para comer e beber”, é o que mais se ouve. Pelo contrário, deve alimentar a auto-estima colectiva, a exaltação de um Povo, o itinerário dos seus antepassados, enfim, o arraial pode preencher simultaneamente o corpo e o espírito. Não apenas, os arraiais populares, mas até os grandes concertos internacionais. Recordo aqui, a título exemplificativo, bandas famosas como os U2, Bruce Springsteen, os Downtown. E tantos outros de craveira mundial que fazem das guitarras, da  voz e das  baterias não apenas episódios de diversão mas poderosas ondas comunicacionais de mensagens firmes que sustentam os grandes valores da condição humana.
         Transcrevo uma das estrofes com que o grupo de jovens locais encerrou a sua actuação:

Nas ilhas do vulcão
Nas terras do basalto
Erguemos bem alto
A chama deste grito
E o chão de granito
Brada sem demora
O futuro é nosso 
Esta é a nossa hora



 13.Ago.2015
Martins Júnior 

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

DESFECHO DO DRAMA “FICAR OU LARGAR” (III)


Quem, em tempo de férias relaxantes, preferiu viajar na linha livre das duas estações anteriores (“Ficar ou Largar”- I e II) estará hoje à espera do desenlace final: em que ficamos? Terá razão a sentença proferida pelo juízo da leitora: “Quem não se revê nos valores da instituição não faz parte dela”! E eu pergunto: haverá direito a recurso quando em apreço está a instituição-Igreja?...
         Sem correr o risco de enfadar o repouso de verão, tentarei marcar algumas bóias de referência neste mar propenso a dúvidas e equívocos sem conta. Quero crer que do paralelo descrito no texto anterior – entre os diversos modelos de instituição  -  pergunta-se se o Império organizacional da Igreja-instituição corresponde à matriz original do seu Fundador ou se, pelo contrário, configurou-se à imagem e semelhança das monarquias absolutas?... Trata-se de um organigrama burocrático-militar ou, antes, de um organismo vivo, dotado de inteligência, sensibilidade e criatividade no pensamento e na acção?...
         É esta a chave do enigma. Os que antepõem a instituição-Igreja à comunidade de corpos e almas em marcha para a Vida – decretarão depressa  a exclusão, ‘sem apelo nem agravo’. Os que invertem a equação – Povo em  perpétua viagem em vez de betão armado, colunas, tronos  e  cúpulas ogivais, por mais sofisticadas que sejam – esses descobrirão que o seu protótipo e Líder, O Cristo Evangélico,  identificou-se com a carne humana, o Povo em marcha, deu-se-lhe todo, combatendo a ignorância, a alienação e a despersonalização com que os pilares da Sua Religião, sediada em Jerusalém,  sufocavam os crentes. A Sua paixão era a dignificação e a ascensão global dos seus conterrâneas, ao ponto de ser acusado pelos fariseus de subverter a lei de Moisés e de colocar o Homem à frente de Deus. Poderia o Mestre afastar-se, abandonar, largar – deixando os seus contemporâneos condenados às garras do obscurantismo, do medo, do terror divino. Mas não fez. Manteve-se firme, inteiro e intemerato até ao fim. Mesmo sabendo que após a Sua morte viriam os abutres sem escrúpulo (“ a praga do Vaticano”,  disse-o  Francisco Papa) e do Seu Corpo fariam mina de ouro, dos seus braços amorosos fariam chicotes de tortura e do Seu Coração aberto jorrariam labaredas condenatórias contra quem Lhe seguisse as pegadas. Mas não desistiu!
         Milhares de homens e mulheres, mártires da Inquisição de todos os tempos, que abraçaram a comunidade, a Sua Ecclesia, acabaram atirados às feras pela instituição-Igreja. Mas não desistiram! Porque viam no seu Povo, não um rebanho acéfalo, manada bruta de autómatos invertebrados, mas carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue, com fome e sede de Verdade e Luz, sempre em escala ascendente ao encontro da Casa Paterna.
         Certo é que, neste dilema, abrem-se dois caminhos opostos, um dos quais é o de sair e lutar denodadamente (alguns pegaram em armas) para derrubar a instituição. O outro, permanecer e abrir clareiras na mentalidade dos crentes, ‘armá-los’ de ideias e perspectivas, num paciente e porfiado esforço de propedêutica socio-cultural e espiritual, redescobrindo o rosto fraterno do Cristo-Fundador, para esconjurar os falsários predadores da instituição e  cumprir a directiva do bracarense Frei Bartolomeu dos Mártires (1514):  Ecclesia sempre reformanda – a Igreja deve estar sempre em processo de transformação. De purificação, acrescento.
         É este um trabalho árduo, mas consistente. Quando os cristãos de base interiorizarem que também são fermento na Igreja, então serão eles os construtores da Igreja-comunidade, de regresso às fontes primeiras da sua crença. Abrir-se-lhes-ão os olhos e então cairão as superstições pias, os báculos acusadores, as mitras balofas. Tem sido assim o percurso do Papa Francisco, esperando ele que a imensa assembleia dos cristãos compreenda o seu alcance e assuma o  lugar que lhe compete no grande fórum da História.
         Louvo todos quantos – gente boa, verdadeira “estirpe cristã” – que no seu dia-a-dia vibram com este anseio libertador. Louvo os que largaram, como bem descreveu Bernardo Santareno, na peça “A Traição do Padre Martinho”, quando este, perseguido pela Pide, abandonou a sua paróquia do Cortiçal,  desabafando amargamente: ”Não é possível ser-se padre em Portugal”.  Tal como na luta socio-politica, louvo os que desertaram da guerras fratricidas em África e, no estrangeiro, lutaram contra a ditadura.
         Mas maior louvor dedico aos que ficaram, organizando e apoiando o Povo nas suas justas reivindicações, os que foram despedidos, perseguidos, jogados às prisões, manietados e torturados. Esses mantiveram-se firmes às raízes e aos ideais. Por vezes, custa mais ficar que partir. O mesmo se pode subscrever quanto à organização familiar.
         O importante é o conhecimento. Recordo-me do Prof. H. Hoestlandt, da Universidade de Lille, quando o acompanhei na Madeira numa inesquecível pesquisa científica por todo o litoral insular. Ofereceu-me a obra do P. Vouiillaume, Au coeur des Masses, sobre a vida e o assassinato de Charles de Foucauld, no deserto dos tuaregues. E apôs a seguinte dedicatória: “Pour uns découverture du Christ”. Foi este convite à descoberta que me  marcou os passos futuros, já lá vão mais de 60 anos.
         Apraz-me terminar esta mini-trilogia – “O drama de ficar ou largar” – com recurso à estância 40, Canto I, do valoroso Luís Vaz de Camões: “É vergonha desistir-se da coisa começada”, Aqui, “coisa” é conhecimento, é ideia, é “sonho que comanda a vida”!
         11.Ago.17

Martins Júnior

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

FICAR OU LARGAR?... II


Mantenho a premissa enunciada no texto anterior: uma palavra  envolve mais de mil imagens. Eis-me aqui hoje a navegar sobre o turbilhão de rotas e paisagens suscitadas pelo dilema gráfico – “ficar ou largar” -  a propósito da forma como  Raquel Varela comentou  o encontro de três sacerdotes, “três lados luminosos de uma Igreja justa” e à qual alguém teve a amabilidade de observar: “Quem não se revê nos valores da instituição não faz parte dela”. Mais concretamente: quem não está de acordo com a Igreja-instituição deve largá-la. Prometi esclarecer e cumpro agora, obrigando-me, pela escassez de espaço legível, a um esforço de apertada síntese, em cinco itens:
Primeiro - De que género ou figurino-instituição é que estamos a falar, quando nos referimos à instituição-Igreja? Trata-se de uma estrutura monárquica, hermética, reservada a uma estirpe genealógica aristocraticamente segregada e transmitida por herança mítica, à semelhança do Velho Império Romano ou do Sacro Império Romano-Germânico?... Trata-se de uma organização militar, arregimentada num castelo monolítico, servido por estrelas do marechalato e generalato, logo seguida dos galões dourados de capitães e tenentes até diluir-se na massa informe das praças, impedidas de pensar e só condenadas a executar?... Tratar-se-á ainda de uma  pirâmide do sistema de Max Weber em que pontifica o ideal burocrático, pelo qual basta carregar no botão hierárquico e logo  toda a máquina acciona um encadeamento de peças autómatas, êmbolos, parafusos, correias de transmissão?...
Segundo - Estaremos seguros que foi esse o modelo da Ecclesia (Assembleia) que Cristo quis quando criou a sua Igreja?
Terceiro - Como se portou o mesmo Cristo perante o Templo de Jerusalém, a sede da religião judaica oficial, na qual nasceu e cresceu?... Largou-o, abandonou-o?... Foi-lhe inteira e cegamente submisso?... Esteve sempre de acordo com os Sumos Pontífices Anás e Caifás, ou com os sacerdotes e levitas do Templo?...  Lembram-se das críticas cerradas, verrinosas peças de oratória tribunícia, “raça de víboras, hipócritas, cegos que guiais outros cegos, fétidos sepulcros, por fora caiados de branco e por dentro antros de podridão”?!... Pergunta-se: Apesar disso, deixou de frequentar o Templo?... Lembram-se: aos doze anos já lá estava a discutir com os sábios e doutores da Lei, mais tarde entrou desabridamente no Santuário e  com azorragues escorraçou os que lá dentro “faziam da “Casa do Meu Pai uma banca de negócio”?!...
Quarto - Para manter a Sua Igreja (Assembleia) por que Constituição se orientava Cristo:  por um esquelético, desumano e gélido Código de Direito Canónico, decalcado do Codex Juris Romanus, com penas talhadas ao milímetro e exclusões cominatórias, algumas até sem processo formado?... Lembram-se de Pedro que O negou, da Madalena, de Zaqueu, de Judas até, convidado para a Sua mesa?!... “Na Casa do Meu Pai há muitas moradas”…
Quinto - Por fim, a questão inicial e a incógnita final: Fugiu Cristo à participação da Religião de Moisés, apesar de estar em desacordo frontal com a orgânica e contra  os máximos titulares oficiais que a deformavam?... “Não vim destruir a Lei e os Profetas, vim aperfeiçoar”. Esta a pedagogia do Mestre e pela qual o assassinaram.
Esperava concluir hoje esta reflexão, a única que me serve de guião e bússola segura no mar encapelado deste dilema gráfico – “Ficar ou Largar”.  Reconheço, porém, que as interrogativas descritas nos cinco itens  já vão longas e, por certo, poderão constituir semáforos auxiliares para encontrar a meta serena desta estrada por onde entrei. Por onde entrámos.
Encontrar-nos–emos na estação seguinte, que é como quem diz,  no próximo dia ímpar.
09.Ago.17

Martins Júnior

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O DRAMA DE FICAR OU LARGAR


Se, como se diz, “uma imagem vale mais que mil palavras”, também se lhe deve apor o contraditório, acrescentando que uma palavra pode sugerir mais que mil imagens. E foi, precisamente, esta tese-antítese que deu mote a uma intensa reflexão que abala e todos os dias agita a aparente acalmia de quem se fez ao largo no vasto oceano da vida. O meu caso, também.
Directo ao assunto: a historiadora Raquel Varela publicou na sua página pessoal a imagem que, com a devida licença, coloquei em epígrafe. Três padres amigos, Tavares, José Luís Rodrigues e eu, aproveitámos a hora de almoço para colaborar com a autora e com a investigadora brasileira Luísa Barbosa no estudo que ambas decidiram fazer, tocando as margens da historiografia da Igreja na Madeira. E comentou, ela própria, a foto, escrevendo: “três lados luminosos de uma Igreja justa, transformadora”. Logo choveram comentários e denúncias em cima de duas palavras apenas: ”Igreja justa”, os quais se sintetizam num único conceito, de que a instituição não é nem nunca foi justa.
Uma declaração, porém, voltou a bater-me como uma pedra pontiaguda na testa, até ao peito: “Quem não se revê nos valores da instituição não faz parte dela”. Uma proposta clara: sair, fugir, abandonar.  Quantas vezes essa pergunta anda a atormentar-me – a mim e a tantos outros  companheiros de viagem! E é sempre a mesma corrente das marés  e contra-marés constantemente  a marulhar cá dentro, num duelo febril!
Já descobrimos, pelas vergastadas na vida, aquilo que nos esconderam em doze anos de internato de seminário: que a Igreja-instituição não cumpre, detectámos a olho-nu que ela despiu pomposamente o seu Fundador na praça pública, vimos que ela apropriou-se despudoradamente do seu programa de luta pela Verdade, de humildade e serviço, para transformá-lo num Império de ouro, de hegemonia mundana, de corrupção acetinada. Não tenho dúvidas de que o Vaticano é o  monstruoso muro da vergonha que nos impede de ver o verdadeiro rosto do Cristo Histórico, Aquele que não se vergou perante a ditadura religiosa dos magnates do Templo oficial de Jerusalém, mesmo nos paroxismos da mais vil tortura no cadafalso raso do Calvário.
Mas, então, porque continuas nesse antro de injustiça e hipocrisia?...
Vou responder-lhe. Antes, porém, tentarei mostrar factualmente a radiografia de uma instituição que subverteu, sem escrúpulos, todos os ideais libertadores do Mestre que ela invoca todos os dias nos seus rituais, não para iluminar mas para obscurecer os homens e mulheres de boa-fé. Presumo que o Império vai continuar, séculos fora, não “por obra do Espírito Santo”, como abusivamente apregoam os seus serventuários, mas pela capacidade mimética de adaptar-se a todos os regimes de poder político e económico, o que levou o grande bispo e santo, Agostinho de Hipona, a produzir,  há 1.500 anos (séc.V)  esta cruel mas rigorosa sentença: Casta meretrix Ecclesia – “Igreja, casta prostituta, meretriz sempre pura”.
Dispenso-me de repetir, a este propósito, o que já referi  em outras circunstâncias: o incesto de poderes, que junta no mesmo pescoço a cabeça do poder religioso e a cabeça do poder de Estado. E aí temos, o Estado Vaticano a nomear embaixadores (iguais aos diplomatas leigos) com a sacrílega chancela de “Núncios Apostólicos”. Oh Pedro Apóstolo,  pescador do mar  da Galileia, sai do túmulo e anda ver os palácios e os galões cardinalícios com que se vestem os teus colegas de pesca, a companha do teu barco!
Um dia destes, um amigo emigrante venezuelano, de férias na Madeira, confidenciou-me: “Sabe, o padre lá na minha cidade, que é meu amigo também,  disse-me que esta Papa é comunista. Afiançou-me que era”.  Só porque Francisco ( a excepção clamorosa na história dos Papas!)  toma a defesa frontal da justiça social. E por essa razão os pilares da instituição, bispos e cardeais, uns em surdina, outros abertamente (o americano Leo Burke, por ex.)) querem processá-lo, a Francisco, como herege – que  mais provas pretendemos nós para classificar a instituição como marginal e defraudadora do Cristo Histórico?!

     Perante esta cegueira insanável, porque maquiavelicamente elaborada, o Papa Francisco deveria abandonar não apenas o trono do Vaticano mas a própria instituição-Igreja. Mas não o fez. Nem fará, espero eu. E com esta proposta, já começo a justificar-me face à observação de   . É o que apresentarei no próximo dia ímpar.
Martins Junior
07.Ago.17

sábado, 5 de agosto de 2017

222… 222 … repito 222 – ESQUEÇA ESTE NÚMERO!!!!!!


Hoje arrisco-me a apanhar umas valentes bordoadas electrónicas, na mesma linha de correio por onde escrevo este arrazoado de circunstância. Porque, propositadamente, escrevo na hora em que  por tudo quanto é sangue português  corre açodadamente a ‘luta´ entre a capital do Império e o berço que lhe deu o ser. Mais claro, escrevo enquanto oiço à distância o cachão frenético  dos que assistem, via TV, o desafio entre o Benfica de Lisboa e o Vitória da cidade-mãe da nacionalidade, Guimarães.
Lá se vai todo o encanto que tinha reservado para este fim-de-semana. Hoje mando a poesia às urtigas e destoo militantemente da euforia que por aí anda desenfreada. Acentuo: hoje  cresceu uma força maior dentro de mim para cumprir o que, de há muito tempo, já tinha decidido: desligar o televisor quando e sempre que traz à rua  e polui o quarto o que  ao futebol diz respeito. Sejam os jogos, os comentários, os  ‘doutos paineleiros’, alguns até derrotados nas lides políticas,  que se sentam em mesas redondas para moer e remoer o rectângulo de que se alimentam. Passei a detestar liminarmente.
            Perguntarão o motivo desta decidida pulsão contra a absoluta monarquia do ‘desporto-rei’, assim cognominado pelo vulgo vassalo. Acusar-me-ão de anti-futebolista primário- Mas dali não saio desde que os noticiários arvoraram em tresloucadas parangonas o enunciado no título: 222! Isso mesmo: venderam duas pernas do esqueleto de um homem por 222 milhões de euros!!! Dizem mesmo que a ‘módica quantia’ vai esticar para 280 milhões. E lá vão mais seis s exclamações!!!!!!...
Nem me dou sequer ao incómodo de repetir argumentos e considerandos sobre este mercado negro – a nova escravatura, esta de luva branca – que rumina diamantes e humilha  a condição da humanidade que moireja toda a vida sem nunca ver na  sua mesa senão o ‘pão que o diabo amassou’. Venham os economistas e façam a contabilidade entre o Deve e o Haver desta indústria exportadora-importadora. Venham os psicólogos e educadores e  perscrutem a mentalidade de uma criança ou de um jovem colocados perante a ‘inutilidade’ de estudar e a fábrica de fazer dinheiro com um par de botas…
Mesmo que Manuel Alegre lhe dedique poemas ou que Vitorino alinhe notas musicais na relva alentejana soltando loas aos futebois, não hesito em classificar todo este emaranhado de compras e vendas como uma requintada forma (encapotada e idolatrada pelo rebanho ignaro, de alto a baixo) digo, uma forma encapotada  de capitalismo selvagem, galopante. Não é por acaso que o PSG deixou de ser francês para tornar-se uma colónia de um dos representantes do petróleo das arábias, o tal que deixou cair dos calções os tais 222 milhões.
Fosse um médico, um enfermeiro ( hoje mesmo,  certa comunicação social esteve de orelhas fitas para criticar) fosse um professor, um administrador consciente, um operário competente, um cientista ou até mesmo um político honesto a reclamar idênticos honorários – e caíam o Carmo e a Trindade, “olha os parasitas, olha os ladrões, grandes vigaristas, abutres da inflação”!  Mas  ao “bípede sem penas” (relembro Platão) que tem a bola no papo, já ninguém critica, todos aceitam e esperam mais. Quem será o senhor que se segue, nei-mar ou nei-terra ou nei-ar?!
Fico-me por aqui, esperando as bancadas que muitos vão arrancar e atirar  ao rosto deste escrito. Mas sei também que haverá por aí alguém que me acompanhe, tal é a obscenidade, como dizia hoje um conceituado jornalista, do mercado negro das, enfaticamente chamadas, transferências. Só me resta confirmar a decisão que originou este texto prosaico, mas esclarecido e militante. Porque (reafirmo o que disse há algum tempo) abrindo  o meu televisor para aturar pontapés no couro-não cabeludo, os sábios e falantes  “furões” da caça futebolísticas ou a cloaca de corrupções que fedem  dentro e fora dos estádios –aí já estou a ser cúmplice-consumidor e comparsa-vendedor dos tóxicos produtos que destroem os valores e minam as sociedades.
Amantes do verdadeiro desporto que torna são o corpo e saudável o espírito, “anima sana in corpore  sano”, Sim! Predadores e traidores aos ideais olímpicos, Não!

05.Ago.17

Martins Júnior