quinta-feira, 29 de junho de 2017

OS INCÊNDIOS CONTINUAM NA LÍNGUA DOS PIRÓMANOS…


Por muitas festas e folguedos que nos cerquem, é impossível passar indiferente a Pedrógão Grande, como impossível é atravessar o fogo sem chamuscar a pele. Logo à entrada, uma conclusão linear: um incêndio, tal como uma desgraça, nunca vem só. É o que se passa diante dos nossos olhos. Acabaram-se os fogos naquela encosta beirã, outros se reacenderam na praça pública. Incendiários à solta aí andam nos jornais, nos cafés, nas escolas, nos laboratórios e, sobretudo, no caldeirão-mór chamado Parlamento. Há quem os chame de bombeiros sem bomba e até, na gíria do ridículo, ‘treinadores de bancada’. É vê-los por quanto é beco sem saída a perorar, esbracejar e espumar ciência de cordel, num vale-tudo para incendiar papel e tinta a granel. Tenho seguido conferências e conferencistas, debates, debutantes e debutados, especialistas e experimentalistas, todos num tropel de contradições tais que dariam para colocar as teses e o seu contrário, em paralelismo esclarecedor. Alguns casos:
Que deveria repor-se o gado nas serras para limpar os terrenos. Mas logo os vegetarianos e ambientalistas mandam escorraçar os pobres bichos do seu habitat natural.
Que deveriam regressar ao seu estatuto os guardas florestais, ampliar as Corporações de Bombeiros e pagar-se-lhes um salário melhor. Mas lá vêm os da guarda, os marinheiros, os precários, os da pré-reforma, os professores, os médicos, todos com sua razão para puxar o lençol à sua testa, ficando desabados os pés dos ‘soldados da paz’.
Que deveriam restabelecer-se os extintos governadores civis como eixos indispensáveis à coordenação das operações. E do outro lado, a inutilidade do posto face à descentralização dos poderes e transferências para as autarquias.
Que deveria combater-se a desertificação do interior. E, ao mesmo tempo, eliminam-se juntas de freguesia, escolas, agências bancárias, correios e centros de saúde.
Que deveria combater-se a proliferação dos eucaliptais. E logo esperneiam os industriais e os agricultores de poltrona gritar que o sector “garante ao nosso PIB  2800 milhões de euros anuais através das pasta e do papel”.
Que deveria (nem a caça escapa) reinstaurar-se o velho regime cinegético, com facilidades e apoios aos caçadores, como vigilantes ‘pro bono’ da floresta. No entanto, não são poucas as suspeitas da classe sobre as vantagens decorrentes dos incêndios.
Que deveriam  os donos dos latifúndios baldios ser obrigados a limpar as terras, sob pena de lhes ser retirado o título de propriedade ou, no mínimo, a vendê-las ao Estado, reinstaurando a sábia “Lei das Sesmarias”. Mas logo salta o dogma das sanções sobre a propriedade privada, previstas e punidas no nosso ordenamento jurídico, tanto por lei ordinária como  pela nossa Lei Fundamental.   
Para sintetizar: Que deveriam ser alocar-se verbas substanciais ao planeamento florestal e ao coberto agrícola, uma vez por todas, já que nunca tal aconteceu neste país. Porque “a floresta é o nosso futuro”. E de arrasto gritam de outros quadrantes: “O mar é o nosso futuro”… “A saúde é o nosso futuro”… “A educação é o nosso futuro”.
Onde achar quartel para conter tantas chamas e conciliar tantas contradições?!...
No Fórum da Liberdade, todas as críticas são admitidas e todas as soluções comportam um valioso peso contributivo. O que repugna, porém, é o virulento dardejar de setas em fúria por parte de alguns que, tendo culpas antigas no cartório, irrompem desenfreados, olhos de tição em brasa e cara de barrotes queimados, bradando e vociferando, como se só agora descobrissem a velha “Caixa de Pandora” onde sempre viveram acomodados, insensíveis.
Enquanto a barafunda inunda o espaço, há gente que sofre. Tanto as vítimas inocentes como aqueles que, por mandato público, são chamados a intervir e  resolver. A todos, uma palavra e um voto: Força, porque a tarefa é imensa, Ars longa, vita brevis! Tocar na floresta é construir para a eternidade.

29.Jun.17

Martins Júnior

terça-feira, 27 de junho de 2017

SOLIDARIEDADES PÓSTUMAS --- SUCESSOS E DESAFIOS

Dobrado sobre o escantilhão dos caracteres gráficos, aqui de longe, escrevo à mesma hora em que Lisboa, dentro e fora do  Meo Arena, transborda de sons e tons quentes, solidários – daquela solidariedade que transforma as cinzas em generosas fogueiras, maiores que os incêndios que devoraram cinquenta mil hectares de terra beirã. É o  genuíno animus lusitanus, coração pátrio, pronto e  aberto à desgraça quando esta  nos bate à porta. São as instituições, são os grandes bancos, com o BCE `na vanguarda, são as igrejas, os padres e os frades, os cidadãos anónimos que correm pressurosos a amparar os desvalidos, os imigrantes do lume, foragidos dentro da sua própria casa. Aproveita-se a hora para tocar a rebate  com o badalo de grandes dádivas na comunicação social. E a sociedade toda, pela boca do Presidente da  República, exclama como que num assomo de requintado narcisismo. “Não há gente como esta”!
Louvo a capacidade regeneradora do Povo Português em toda esta tragédia, enquanto me deixo envolver na manta de lágrimas e retalhos das  vítimas e suas inconsoladas famílias. No entanto, desde as frágeis da orelhas do cidadão comum até às velhas muralhas das arribas, o que mais troa no ar é um simples e poderoso trissílabo: PRE-VEN-ÇÃO. Repetem até à exaustão  investigadores e ambientalistas  que é na prevenção que está o ganho, porque mais que remediar,  o que  vale é prevenir. Esboçam-se planos e traçam-se programas em conformidade: faltam guardas florestais, é urgente restaurá-los; os pobres bombeiros ganham pouco e não têm arsenal suficiente para combater os incêndios; não há quem limpe as matas e “a floresta é o nosso futuro”.  São estas as notas que perseguem governantes e governados, notas mais graves e mais agudas e todas mais gritantes que os acordes do mega-espectáculo desta noite no Meo Atena.
No entanto, passadas que forem mais meia-dúzia de luas, quem se lembrará disso?... Sem querer entrar, hoje, em aspectos parcelares da questão, ouso perguntar: Estarão os mesmos banqueiros, as mesmas instituições de benemerência, as mesmas igrejas e congregações na disposição de contribuir para a Prevenção, com os mesmos valores (ou em 50%)  do que deram para a Remediação?... Duvido.  O que mais se ouvirá  é o estafado e estouvado  bocejo: “Isso é lá com o governo”.  Criou-se passivamente  um inconcebível paradigma fiscal que se resume a isto: Prevenir é com o governo, Remediar é com o Povo! Como se Prevenir não fosse  o dobro, o triplo, o quádruplo de Remediar… Toca-se aqui o nervo mórbido da condição humana, infiltrado e cozido bem dentro de nós, quando acompanhamos religiosamente o funeral de alguém a quem pouca ou  nenhuma atenção prestámos no decurso da sua atribulada vida.
Gostaria de dissecar mais aprofundadamente este paradoxo, no que concerne aos incêndios e às intempéries. Mas deixo-o, por agora, para não empanar o brilho do dadivoso gesto dos 25 artistas, “Todos Juntos por Petrógão Grande”. Um milhão e duzentos mil euros!!! Merecem o maior aplauso. Como o merecem todos aqueles que, dentro ou fora das ONG’s, lutam persistentemente, no silêncio de todos os dias, pela defesa  do ambiente, esta nossa “Casa Comum”,  onde o Homem possa respirar o ar puro da Segurança e da Saúde.
Mais vale a Solidariedade viva da Prevenção  do que a Solidariedade póstuma da Destruição.

27.Jun.17

Martins Júnior   

domingo, 25 de junho de 2017

POR QUE NÃO CANSA A “COISA AMADA” ?


Não deixam de atravessar-me as narinas os tições  fumegantes de Pedrógão Grande nem o contraste das garridas marchas populares do trio  santoral de Junho pára de soar aos meus ouvidos. Entretanto e porque hoje é domingo faço um ‘stop’ estratégico para mergulhar  noutras águas mais profundas que vão desaguar no escrito do meu “Dia ímpar”, 22 de Junho. Como é possível amar durante quase meio século sem nunca nos cansarmos da “coisa” amada? … Por “coisa”  considera-se aqui  uma   entidade ontológica, ou seja, a totalidade do objecto que se ama , quer se trate de uma  pessoa, paisagem, pátria, livro, ciência ou arte. Com este cenário em fundo,   estamos todos no mesmo palco. Toca-nos a todos o grande enigma que aquela pergunta condensa.
Amar não é dar. É dar-se.
Desta diferença abissal  emerge em plena luz  que não é a prenda nem o anel nem o ramo de flores nem o cheque de enxoval que define a promessa de amor, nem sequer a incondicional entrega dos corpos em exaltação febril. Da mesma forma que não são o “pão e os jogos” nem a auto-estrada  nem o bloco de apartamentos nem as pontes voadoras nem os sumptuosos monumentos que tornam inesgotável o filão da “pátria”  que se ama. Tudo isso “se esfuma como a brancura  da espuma que se desmancha na areia”, assim escreveu o inspirado sambista brasileiro Orlando Silva. Desengane-se, também, o Povo das juras e das patrióticas doações dos que servem em baixelas de festas arraialescas os tambores e os foguetes, o betão e o alcatrão que tresandam ao velho ‘mercúrio cromo’ eleitoral. Um dia, cedo ou tarde, serão inevitavelmente  “as palavras gastas” do nosso Eugénio de Andrade.
O amor que nunca se cansa da “coisa amada” não tem agência de câmbios mensuráveis. É outro o seu trono – “ o  invisível” de Saint Exupéry – a mentalidade, a pedagogia, a sensibilidade, enfim, a nascente intocável de onde promanam os rios do Ser ( e nunca os do ‘ter’), seja no cidadão individual, na família ou na escola,  seja na personalidade colectiva de um país, de uma região ou de uma remota aldeia. Penetrar na central energética do outro e ver crescer “cravos, rosas em botão” onde só havia cardos e espinhos, eis a “coisa amada”  que não morre e não nos deixa morrer.  Neste entendimento, a história recente da ilha é a prova inapelável de que tudo terão dado aos ilhéus menos o amor, a educação cívico-cultural e social perdurável nas gerações vindouras.
E porque é Domingo, hoje percebi melhor  o alcance do veredicto do Mestre: “Não tenhais medo dos que matam o corpo e não podem fazer mais nada. Temei, sim, os que podem matar a alma e o corpo”. Contrariamente às interpretações da fatalidade justiceira dos deuses julgadores, entendi, hoje com maior incidência cirúrgica, que “matar a alma” significa truncar a mentalidade,   prostituir a sensibilidade,  armadilhar o chão da estrada do futuro – o pessoal e o social. E isso é o desamor poluído e poluente. É a traição consumada, por mais sofisticada e aparatosa  com que pretenda travestir-se. As igrejas têm aqui uma inexorável ‘operação stop’ para questionar-se perante a dura realidade, a de ontem, a de hoje e a de  amanhã.
Do aprofundamento relacional  entre quem ama e o seu ‘objecto’ dependerá a renovada juventude da “Coisa Amada”.

25.Jun.17

Martins Júnior

quinta-feira, 22 de junho de 2017

48 ANOS NA RIBEIRA SECA!

                                                                                                
Não há regimes para a vida. Nem dogmas. Nem empregos. Nem instituições para sempre. E quando as houver é porque o Homem deixou de ser igual a si mesmo para tornar-se peça e produto da máquina trituradora.
Para sempre – só o Amor!
Chamem-lhe paixão, sonho, chama,  alma ou coração. O Amor que nos veste por dentro e por fora! O ar que respiramos - só Ele! Mais que as religiões, mais que o talento, mais que a saúde, mais que o casamento, ainda que lhe chamem sacramento. Porque sem Aquele  nem este nem o resto poderão subsistir. (Paulo, Cor., cap.13).
Quarenta e oito anos! – somatório fatídico que para nós, portugueses, traz  à memória os horrores do fascismo. Do regime. Da máquina. Mas que morreu às mãos das armas que fabricou.
Quarenta e oito anos no mesmo palmo de terra. Só um grande   Amor pôde  transfigurá-lo e fazê-lo  do tamanho do mundo. Porque na concha dos dedos do palmo de terra  há pessoas, corações em marcha, há um processo que não conhece ocaso. Pelo regime, pelo emprego, pela instituição, jamais. Só pelo Amor!
“E mais servira se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida”  (Luís Vaz de Camões)
É por Ele que são ímpares todos os dias pares da vida.
O 22 de Junho, também!

22Jun17

Martins Júnior

quarta-feira, 21 de junho de 2017

22/'NÚMERO IMPAR'


ENTRE O FOGO E AS CINZAS, ENTRE A PRIMAVERA E O VERÃO DE CADA ANO, O PARADOXO ACONTECE: DE 21 PARA 23 O MEU ‘DIA ÍMPAR’  É O 22 DE JUNHO. E TEM QUASE MEIO SÉCULO. ATÉ AMANHÃ!


Martins Júnior

segunda-feira, 19 de junho de 2017

ANTI-EPITÁFIO - "ESTRADA 236"


Aqui jaz
Quem achou a derradeira paz
Às portas do inferno

Pedra Pedrógão
Desde o grande ao mais pequeno
Onde se afogam
Em cinza muda
Altos brados
Infinitos sonhos-labaredas  
Trucidados

Lampadários solenes como círios
Os troncos
Vítimas e assassinos
Sangrando raivas e delírios
Alumiam um corpo exausto
A caminho do holocausto


Mais cedo que tarde 
Dias virão
E o cruzeiro do vento suão
O mesmo mas de outra cor
Devolva as cinzas desta dor
Ao seu seio materno
E onde foi inferno
Será verde e será pão
Adeus Pedrógão Pedrogão
Estância do terror e Terra da Promissão

19.Jun.17
Martins Júnior


sábado, 17 de junho de 2017

PARAGEM FORÇADA!



Sábado, 17 de 17!  O Funchal regurgita de sons que apertam a cidade e fazem as pessoas, sobretudo os estrangeiros, andar num reboliço de arraial nocturno. Desloquei-me à capital  e, entre todas as propostas, optei pela Orquestra de Bandolins da Madeira, em homenagem ao malogrado animador e maestro Eurico Martins. Sempre de encantar o virtuosismo dos executantes, com a simpatia melódica dos mais jovens.
Mas não era esse o meu enlevo nesta noite quase estival. Era outro o encanto que ali fora buscar -  aquele mesmo que nasce do fundo das memórias e que tem por nome ‘saudade’. A memória era a do Eurico e a saudade vinha  de mais longe. Conheci o pai, António, e outros elementos de São Roque, reuníamos-nos  na Fundoa e na Capela da Alegria, nas tardes de domingo.  Era a década de 60. Hoje, ao olhar a ribalta do palco, destacavam-se os 104 anos do “Recreio União da  Mocidade”, o agrupamento que deu origem à actual “Orquestra de Bandolins”.  E o meu deleite de hoje consistia em ultrapassar a imponência da “Sala de Congressos” e fazer de contas que entrara  na oficina de carpintaria, na mercearia do alto de São Roque, na sala estreita onde, porventura,  começaram a trinar as cordas do bandolim. Eram essas reminiscências que eu queria imaginar, reconstituir a azáfama e o amor à arte com que os veteranos de 1913 se ajuntavam para cultivar o espírito, ao fim de um dia de cultivo da terra ou do ofício. Sem apoios públicos, sem anúncios publicitários, sem proventos lucrativos, deram o seu talento congénito para suavizar a vida dura do seu meio  nesses tempos de tristeza e, nalguns casos, de miséria.
Era esse o meu projecto: render homenagem aos antepassados da hoje “orquestra”  e a tantos outros trabalhadores anónimos que, nos meios rurais, abriram clareiras de cultura onde reinava o obscurantismo.


Chegando, porém, a casa, deparo-me com a tragédia de vidas calcinadas pelas chamas em Pedrogão Grande. Ver-se rodeado de lume devorador, num automóvel-prisão fatal, pais e filhos desesperadamente carbonizados, em fim-de-semana!... Igual ou pior que a tragédia em Londres!... Tudo isto só me lembra um fatídico 15 de Agosto/67, quando uma mina anticarro matou 11 amigos meus, um deles, o condutor, consumido pelas chamas, perante os nossos olhos impotentes…
E não posso continuar!  Desisto da orquestra e de todas as memórias nesta noite… Peço desculpa.

17.Jun.17

Martins Júnior

quinta-feira, 15 de junho de 2017

"ISTO É O MEU CORPO"


Desde o romper da manhã, hoje o Dia é um campo de trigo louro ondeando energia e paz. É também o cheiro capitoso dos vinhedos a perder de vista diante dos nossos olhos. E onde não é  trigal nem vinhedo, o Dia é um pomar de saúde borbotando das macieiras em flor, um poema de rimas doces e homéricos alexandrinos. Por isso, hoje é o Dia lírico, onde o verve sensual do planeta se irmana com  a excelsa altitude do Espírito.
Chamam-lhe o “Corpus Christi”, o Dia do Corpo do Cristo Nazareno. E por isso, hoje é o Dia claro do Poema que bebe da água das nascentes mais fundas  e jorra para além de tudo o que é fronteira do humano. E é esse o convite que aqui deixo para cada um de vós tornar-se uma estrofe desse corpo. Considerem-no o que quiserem: sublimação mística ou panteísmo telúrico ou cântico intemporal -  solenemente declaro que é esta a minha Oração Universal.
Eu Te saúdo, ó Cristo, que não buscaste o ouro, o diamante ou a estrela distante para Te identificares no horizonte da História. Antes quiseste ser terra que dá espigas - espigas que dão farinha do moinho  e depois  se abrem em pão para o Corpo e para o Espírito. Eu te saúdo no rústico pomar, na estufa delicada, nos rios que se fazem ao mar e no azul aquático que sobe para o alpendre das nuvens e retoma o movimento circular da criação primeira. Não quiseste outra veste senão a do Pão e a do Vinho transbordante da taça da Vida!
Procuro-Te  nesta mesa proletária comum, mas  rica de nutrientes biológicos sustentáveis. Ninguém venha convencer-me que mastigar a Tua carne, beber do Teu sangue ou trincar os Teus ossos é mais importante que assimilar o Teu pensamento, moldar-me às Tuas atitudes ou consubstanciar-me com o Teu projecto!  É outra e maior a  consubstanciação que me queres  doar, como é mais radical e pujante a transfusão que operas em quem Te recebe. Nesta Quinta-Feira e em todos os dias e todas as horas que são também Quinta onde Tu moras. Como Teilhard de Chardin, também professo que entre panteísmo e idolatria prefiro o primeiro:  ver-Te assim,  ecologicamente desnudo na planura virgem  da Mãe-Terra. E não consigo melhor tradução daquela imensa ressonância que atravessa milénios: ”Isto é o meu Corpo… Isto é o Meu Sangue… Fazei isto em Memória de Mim”.
Porque é Dia do Poema sem palavras, as crianças que hoje acederam, pela primeira vez e por direito própria, à Mesa Eucarística, trouxeram  a cereja em cima do bolo quando, em apertado abraço da “Família da Primeira Comunhão”, cantaram assim:
“Na Primeira Comunhão
Nós desejamos, Senhor,
Que no mundo haja mais Pão,
Mais Respeito e mais Amor

Por isso agora prometo
Para quando for maior
Lutar pela Eucaristia
Fazer um Mundo Melhor”


Dia do “Corpus Christi” – 15. Jun.17
Martins Júnior


terça-feira, 13 de junho de 2017

EM DESAGRAVO DE FERNANDO DE BULHÕES NO SEU DIA “SANTO ANTÓNIO”


Quem te amarrou ao cepo
De uma milenária noite estulta?
E quem te travestiu
De usurário agente da turbamulta
Em velórios mortiços
Mitos bentos óleos  e feitiços?
Que mão rasteira
Te enfardou e apalhaçou
Entre os varridos balões da feira?

Grandíloquo helénico Demóstenes
Da era medieva
Precursor de Vieira a haver
Esconjurando a treva
Dos tempos

Náufrago migrante
Pelo mundo esparso
Foste ‘Fogo de Santelmo’
Foste Paulo de Tarso
Ulisses bandeirante
Da tua urbe primeira
‘Por mares nunca dantes navegados’

Onde as lusas quilhas não lavravam
Já os teus pés de Assis
Lassos mendigos exilados
Deixavam rasto visionário
De sábio lutador missionário

Em cada areia ou cabo ou frágua
Em tudo vias a amurada de Pádua
Com homens-peixes lá defronte

Oh verbo-fogo que arpava os tubarões
Flameja de novo a afiada espada
Da Justiça agrilhoada

Como outrora os tribunais
Ainda hoje esperam as togas naturais
Que não se prostituam nem fraquejem.

 
 Pessoa com o estro de Fernando
António transmutado de Pessoa
Filhos do mesmo sol de Junho
Amamentados no mesmo berço-Lisboa

Voltai de novo ao seio capital
Génios do Bem
Fernandos da mesma Mãe
E será grande  Portugal

13.Jun.17
Martins Júnior



domingo, 11 de junho de 2017

“QUE É QUE ANDAM A DIZER DE MIM?”…



De entre as agitadas diversões deste fim de semana, restará ainda por aí, no terreiro da vossa casa,  uma ponta de banco tosco onde repousar os ossos e accionar a ignição do pensamento latente activo?
Pois, se houver, aqui vai um olhar vespertino sobre a cúpula de um monumento construído ao longo dos muitos domingos marcados pelos passos do Cristo histórico. Após a trajectória de uma vida, desde o Nascimento até à Morte, os fenómenos da Ressurreição, Ascensão  e Pentecostes, eis-nos chegados hoje ao fim da linha: a entronização da denominada  “Santíssima Trindade”. É a cereja em cima do bolo, a chave de ouro com que se fecha o extenso ciclo das comemorações.
Por imperativo do assunto em causa, serei breve. Cito Lacordaire: “Quando a dor nos bate à porta, gritamos. Mas quando essa dor é grande, dá-nos para sufocar e calar o sofrimento”. No lugar de “dor” coloco  o espanto da descoberta ou o seu contrário, o horizonte inatingível, a pergunta sem resposta, numa palavra, o mistério. É  aí, à beira do abismo e cegos pelo golpe agressivo do sol , que ficamos imóveis, absortos num silêncio de êxtase, sem achar caminho à frente dos nossos passos.
Tudo isto, a propósito deste Domingo da “Santíssima Trindade”. Uno e trino! Uma entidade, a mesma e única, subdividida, transmutada, autónoma em três Pessoas distintas! Quantos oceanos de tinta invadiram a história da Igreja e das mentalidades  – tinta salgada e amarga - porque deram origem a debates e combates, dissenções e cismas?!... Teólogos, doutores, escrituristas, pregadores,  hermeneutas, um batalhão incontável de ‘especialistas’, terçando armas e ideias, lobrigando pelas galáxias da retórica, por vezes doentia, para descobrir o misterioso paradoxo de “Três em Um” e “Um em Três”… Nem mesmo a tríplice heteronímia de Fernando Pessoa seria capaz de acender um frágil fósforo, para  alumiar o mistério trinitário!
Metido nesta enorme ampola delirante de desvendar o enigma, socorro-me de uma alavanca que a racionalidade humana me oferece: se é de um mistério que se trata, o que a Suprema Divindade me pede e exige é que não tente entrar por esse mar estranho, necessariamente oculto aos meus olhos, porque não me foram dados braços e pernas para saber nadar nessa fundura. Perder-me-ia, afogar-me-ia, de certeza. Deus não pode exigir que eu O entenda ou que penetre nos arcanos da Sua Transcendência, da mesma forma que eu nosso posso exigir à flor do meu jardim que me entenda ou à mais preciosa pedra de diamante que leia o meu pensamento. São naturezas diversas, categorias qualitativamente (e infinitamente!) distintas.
Daqui, parto para duas conclusões. A primeira é a de duvidar de muitos palradores, tagarelas de feira que nas suas prédicas,  a cada dois minutos, falam de Deus, como se tratasse de um “tu cá, tu lá” ou como se estivessem a fazer publicidade de um detergente de supermercado. “Não invocar o Santo Nome de Deus em vão” – está escrito nas placas de pedra que Moisés transportou aos ombros. A segunda conclusão é a de vencermos aquele  medo visceral que nos incutiram, desde a infância,  perante um Deus castigador, Justiceiro e Ditador. É verdade que a Transcendência toma a veste da Imanência, mas isso não nos autoriza a moldar a Divindade à nossa imagem e semelhança. E é o que mais se vê em formulários estereotipados e em piedosas devoções.
“Que é que estão para aí a dizer de Mim?” – poderia Deus interpelar certas pregações, discussões e elucubrações acerca da sua Essência. Foi esta construção imaginária que atrevidamente (mas civicamente)  lancei uma vez no Centro Nacional da Cultura, em Lisboa, aos doutores da teologia, eclesiásticos e leigos, especialistas nacionais e estrangeiros, reunidos em conferência. Aliás, foi esta a pergunta que o próprio Cristo fez aos apóstolos (Mt.8, 28-29).
E hoje diria o mesmo. Com a certeza de que me colocaria – e ainda me coloco – na posição do vigilante atento ao sopro do Espírito. O Padre José Luís Rodrigues disse-o também no “Banquete da Palavra” da semana transacta. Permanecermos num silêncio meditativo.
Afinal, não fui breve. E o quanto e até onde levar-nos-ia este tema?!
Captarmos o pensamento genesíaco do Pai-Criador e continuarmo-lo no concreto da existência… Interiorizarmos a lógica regeneradora do Filho-Salvador… Enchermos os pulmões da energia dinâmica  do Espírito-Renovador --- eis uma tríplice proposta para homenagearmos e actualizarmos a todo o momento o denominado mistério da “Santíssima Trindade”!
11.Jun-17
Martins Júnior

   

        

sexta-feira, 9 de junho de 2017

À DESCOBERTA DE UMA PÁTRIA


Não serás minha nem serei teu
Se te não  der
O dobro de quanto me deste

O corpo que me veste
Foi a mátria quem mo deu
Mas a alma do meu país
Sou eu que a trago dentro e fora
Como um  novo cantar de Orfeu

Nesga de terra geratriz
E por mim sempre gerada  lavrada
No pó de cada estrada

Porque flor e fruto definem
O tronco  a raiz
E o húmus onde quer que ele desponte

Não quero que me ponhas na fronte
O louro imortal de uma bandeira
Nem que me leves ao colo
Até à estrela cimeira

Antes quero trazê-la firme plantada
Nos pés doloridos
Nas mãos da tecedeira
Nos ossos ressequidos
E nas cinzas de onde renasces
Sempre que alguém o  queira

Não fora Camões ou Vieira
E os viriatos serranos
E o pinhal de Leiria
E a ‘arraia miúda’ em Lisboa
A Pátria tudo seria
Mafoma Gália ou Castela
Mas Portugal já não era

Sem os marujos de Sagres
Sem Catarina a ceifeira
E sem os ‘rapazes dos tanques’
Nesse Abril auroreal
Milagre que um Povo fez
Não serias Portugal
Nem daqui chamar-me-ia
Livre Ilhéu e Português

9/10 de Junho/2017
Martins Júnior

quarta-feira, 7 de junho de 2017

“MARCELO REBELO DE SOUSA NA RIBEIRA SECA”

        Ora aí está uma notícia-paradigma de tantas outras. Tem tanto de aleatório e charadístico, como de verdadeiro e sugestivo. Começo pelo carácter aleatório e charadístico, pois que o Presidente da República nunca pôs os pés na Ribeira Seca. Por outro lado,  a veracidade da notícia: Marcelo Rebelo de Sousa esteve, efectivamente, na Ribeira Seca. Eis como se pode classificar de falsa uma notícia que é simultaneamente  verdadeira. Meia verdade e meia-inverdade. Ou seja: um título que nada tem a ver com  a realidade local da nossa interpretação. O enigma decifra-se em dois toques de  dedos: “Marcelo Rebelo de Sousa despediu-se dos Açores, na freguesia da Ribeira Seca, ilha de São Jorge, ao fim de seis dias de visita ao arquipélago”.  É esta a notícia que a comunicação social difundiu largamente. Está, pois, desvendado o enigma. Aliás, em todas as ilhas açorianas há sempre uma estância – freguesia ou curso de água – com a mesma denominação toponímica. O equívoco do texto está no título e, por arrasto, no leitor desprevenido que, levianamente, nem lê o corpo da notícia ou, se o lê, deixa-se ludibriar pela superficialidade com que o faz. Não se trata, pois, da Ribeira Seca, em Machico, mas da Ribeira Seca, da ilha de São Jorge.
         Achei sugestiva esta reflexão e trouxe-a à nossa mesa, propositadamente, para  chamar a atenção acerca de  determinada e capciosa  técnica de informar, tão em voga nos dias de hoje, particularmente nos órgãos de comunicação escrita em que os títulos não correspondem aos factos. São os jornais sensacionalistas, os de tendência, os de venda rápida, enfim,  do “pronto a vestir” e ao gosto do cliente. Eles por  aí  têm andado, de mão em mão, oferecendo-se  de graça ou por um café, ao transeunte desprevenido. Sem rigor, trocando alhos por bugalhos, desdizendo nas entrelinhas o  estrondoso batente que ostentam em grandes parangonas, quer em títulos quer em gravuras, tão escorregadias e traiçoeiras como cobras cuspideiras. A omissão ‘ingénua’, o advérbio furtivo, até a própria pontuação, tudo serve para manchar a brancura de uma atitude ou, em sentido malevolamente inverso, branquear decisões e comportamentos nocivos à sociedade. Sei, por experiência, o quanto custa em numerários, exercer cabalmente o direito de resposta… Olho no escriba!
         Saindo destes subterrâneos da má informação, debruço-me sobre a opção do Presidente da República quanto ao cenário da despedida. Não escolheu a histórica Ilha Terceira, nem o Parlamento da Horta, nem mesmo  a nobilíssima Ponta Delgada, mas tão-só a distante  Ilha das Fajãs e dentro dela uma Ribeira Seca, povoação com cerca de 1000 habitantes. Tenho para mim que no pensamento do Presidente está inscrita a primeira estrofe de um grande poema: Small is Beautiful – é belo tudo aquilo que é pequeno, singelo. Protótipo acabado desta categoria ético-pedagógica é Jorge Bergollio, o ‘homem-de-branco’  que desce do trono  imperial para abraçar e trazer ao peito os proscritos da sociedade, atirados às valetas.
         Talvez um dia virá em que o título do texto seja uma realidade plena, inteira e inequívoca, nesta Ilha Primeira, onde a inscrição “Ribeira Seca” deixe de estar cativa e marginalizada pelos senhorios deste poio escasso que é a Madeira. Autónoma e livre a ribeira que já não é Seca, mas cheia!

         07.Jun.17
         Martins Júnior  


segunda-feira, 5 de junho de 2017

O VERDE DA CULTURA NO AMBIENTE DA FEIRA

É de ambientes que hoje se fala. No plural, porque ambientes há muitos. E porque o Ambiente Global, que em 5 de Junho o mundo todo alça em arco, mais  não é que a soma de todos os microclimas ambientais que produzimos e onde, simultaneamente, somos reproduzidos e formatados. Entre o verde das coisas e a raiz do pensamento perpassa toda uma rede de vasos comunicantes, a que se pode chamar o ecossistema bio-psico-social de qualquer sociedade organizada.
Desta simbiose perfeita destaco o ambiente cultural, na sua valência bibliográfica, quer de carácter científico, quer sobretudo o de denominação literária. Várias iniciativas e encontros conduziram-me a este objectivo, a começar pelas Feiras do Livro que nesta altura do ano vão surgindo aqui e além, desde a do Funchal, em formato miniatural, até à de Lisboa onde me perco ao longo de todo o Parque Eduardo VII, levado pela vastidão de um oceano abrangente  de autores e culturas.
Mas há um ‘nó górdio’ a desatar e que pode condensar-se nesta simples pergunta:  A extensão da(s) Feira(s) corresponderá à interiorização dos seus conteúdos por parte dos visitantes?... Mais cirurgicamente: num mundo dominado pelas redes sociais, tão dispersas quanto atractivas, será que os jovens de hoje procuram os nutrientes culturais, substancialmente mais suculentos, como os que  advêm dos livros?... A amostragem que nos foi dada no Teatro Municipal Baltazar Dias, aquando do espectáculo de “Diogo Piçarra, em Pessoa”, dirigido, de preferência,  a estudantes do  10º ao 12º anos, não nos convenceu. Vimos “claramente visto” um deficit de literacia, mais visível na leitura dos poemas de Fernando Pessoa pelos alunos que quiseram subir ao palco, numa prova demonstrativa da falta de contacto com o Autor em causa. Quero crer que o episódio não tenha reflectido o panorama geral da juventude estudantil, antes e talvez uma excepção à regra.
A este propósito, em convívio com docentes de literatura  de escolas madeirenses, uma boa notícia chegou à nossa mesa: a de que voltaram aos programas de ensino aqueles autores, os mestres da escrita em Portugal, de que são exemplares as Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett e os fundadores do Grupo dos Cinco, de finais do século XIX. Outrossim, as obras dos clássicos, “imperadores da Língua Portuguesa”. Sem pôr em causa as questões e as ressonâncias dos tempos actuais, espelhadas em bons autores contemporâneos, a verdade é que a ciência e a arte de escrever têm raízes mais longínquas, nas oitavas de um Camões, nos rasgos de eloquência de um  Padre António Vieira, nos sonetos de Antero, nos fogosos alexandrinos de Guerra Junqueiro, nas ‘claridades’ pictóricas de  Cesário Verde e, por todos, na genialidade de um Fernando Pessoa, entre muitos outros. É de saudar com entusiasmos o regresso às fontes, no âmbito da literatura portuguesa. E desejar que haja professores de quem se possa dizer: “ensina como quem ama”.
Mas há mais. Fora dos muros das universidades e dos areópagos espectaculares, raiados por vezes de mundanas vaidades, descobrem-se ambientes intimistas, salas discretas, onde se realizam mensalmente pequenas tertúlias, sem a pretensão dos holofotes publicitários e em que os ‘sócios’, por fruição e carolice, lêem, declamam os nossos poetas e até produzem contributos, poemas e válidas comunicações que, por mero prazer, reúnem em brochuras despretensiosas mas intensas,  guardadas depois nas estantes e nos corações, como a que me foi oferecida recentemente em Lisboa, por deferência de um dos membros dessas prestimosas tertúlias É a isto que eu chamo cultura, Ambiente.
Não se pode negar o turbilhão desconcertante da nossa época, a tendência para o descartável, a atracção pelo efémero campanudo e os menus do “pronto a servir”, razão pela qual  crescem por aí, todos os dias, como cogumelos do nosso audiovisual, das imprensas e afins, com manchas de palmatória, sem que ao menos peçam desculpa aos leitores. É isto, também, um mau ambiente.
Aproximando-se o Dia de Portugal, nascido do legado do nosso épico, Luís Vaz de Camões, auguro a que, dentro das escolas e fora delas, nos palcos luminosos ou no recôndito do nosso meio, engrandeçamos o Ambiente, celebrando o Dia da Nossa Voz  e erguendo bem alto a patriótica bandeira de Fernando Pessoa: “A Minha Pátria é a Língua Portuguesa”.

05.Jun.17

Martins Júnior               

sábado, 3 de junho de 2017

O FOLCORE DO ESPÍRITO

Consabido é largamente que folclore é Povo, criatividade popular ou tudo quanto o Povo transfigura,  umas vezes sublimando  e  outras desfigurando os factos e conteúdos. Desde o rimance à novelística, desde a literatura à música, desde a gastronomia à superstição. E é aqui mesmo, na esfera livre e desgarrada do fenómeno religioso, que o folclore ganha asas, rompe a atmosfera tangível e penetra na estratosfera do indizível. Mais concretamente, a inesgotável inspiração popular diluiu-se e, depois, apoderou-se da entidade denominada “Espírito Santo” e deu-lhe forma, figura, guarda-fato, orquestra, toda uma arquitectura superavitária, como o praeter  ou sobrenatural convidam a ser e em cujo vértice brilha uma alegria natural, desinibida e difusiva, a que os comes-e-bebes emprestam corda e chama.  Compulsando os manuais da história eclesiástica, (em Portugal, a obra de Fortunato de Almeida, por ex.) constatamos que, à pala do “Espírito Santo”, o Povo foi desenvolvendo uma teia confusa, mistela do sagrado e do profano e  abusos tais que a Igreja institucional teve de intervir, pondo cobro a algumas tradições desviantes e, por vezes, sacrílegas em relação ao objecto essencial do culto em causa.
A Madeira, desde o tempo do Zarco, abriu-se à nova vaga vinda de Portugal Continental, iniciada precisamente pela Rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, com a construção de um templo em Alenquer dedicado ao “Espírito Santo”. Em diversos pontos da ilha, inclusive no Porto Santo, a devoção ganhou templos votivos de grande influência no devocionário popular madeirense. Hoje, ainda são públicas e notórias as romarias, as saloias, as violas e os cantares ao “Divino”, nas divertidas visitas domésticas de índole privativa (casa-a-casa) bem recheadas e melhor regadas, terminando tudo com a ‘conquista do troféu’, ou seja, as ofertas pecuniárias da praxe. Não há muito tempo, um conhecido especialista em folclore, testemunha ocular destes eventos, dizia na nossa TV que muito lhe “custava ver famílias paupérrimas com três envelopes em cima da mesa: um para a igreja, outro para o padre e outro para a festa do “Espírito Santo”.  Enfim, escuso-me de comentar, neste momento, semelhantes práticas.
Pela parte que toca à localidade onde me situo, esclareço que a alegria do Espírito de Deus, transmissiva e saudável, segue outro ritual, susceptível de apreciação crítica, como qualquer outro. Juntam-se os dois “sítios” vizinhos, ou seja, contíguos territorialmente, celebramos a assembleia eucarística em comunidade (conforme a narrativa do Livro dos Actos dos Apóstolos, cap.1º), pela meditação procuramos alcançar a mensagem dinâmica do Espírito em nós e, complementando todo este envolvimento, há festa no campo, as pessoas trazem frutas, produtos da terra, cântaros de flores, petiscos de gaiado seco, bacalhau e similares atados à garrafa de vinho,  bolos e pães confeccionados em casa, tudo é leiloado num espectáculo cheio de humor e música ao vivo.  O mais significativo e até emocionante é que a população  partilha em comum toda a ementa leiloada. A nota dominante nas três celebrações campais (consoante os “sítios” ) é a alegria, não a exclusivista, mas a comunitária que mobiliza e valoriza aqueles encontros em que os jovens também são parte integrante com os instrumentos da tuna.
Passando adiante neste apontamento de reportagem, o que importa relevar e nunca esquecer é que o Espírito manifesta-se em tudo quanto existe: em nós, prioritariamente, na terra, no frutificar das sementes pela mão do lavrador, nos operários fabris, no trabalho intelectual, enfim, em tudo o que levanta o ânimo dos povos. Por isso, no hino litúrgico que hoje e amanhã as igrejas cantarão, lá está o princípio activo dinamizador da vida: “Vinde, Espírito de Deus, vinde renovar a face da Terra”. Em qualquer lugar, por mais inóspito que seja, e lá houver Vida a germinar  no coração da pessoa e no seio da terra ou do mar ou do ar, aí estará o Espírito autêntico que renova o mundo e a sociedade.

Foi o que vivi hoje (permitam-me este desabafo) na longínqua freguesia de  Canas de Senhorim, distrito de Viseu, no convívio anual da Companhia que o meu amigo e conterrâneo Capitão Miliciano Dr. Alexandre Aveiro  comandou em terras de Moçambique, nessa malfadada guerra colonial: as famílias, filhos e netos, até  um jovem casal que propositadamente veio da Holanda  para juntar-se ao pai, ex-militar, enfim, um abraço solidário entre os que sobreviveram e uma saudade imensa por aqueles que a morte já não deixou marcar presença. Da celebração passou-se à mesa do restaurante na Quinta do Boiça, onde  se viveram momentos de entusiasmo fraterno e, com a ementa, continuámos a servir-nos as iguarias do pensamento crítico positivo sobre temas do maior interesse espiritual e social.
Hoje, foi Dia de Pentecostes, a aura do Espírito, em Canas de Senhorim. Amanhã, sê-lo-á na nossa comunidade da Ribeira Seca. E continuará sempre em cada qual, quem no queira – seja individual e intimamente, seja  solidária e colectivamente – desde que “os ossos se reanimem” (Profeta Ezequiel) e queiramos renovar a face da terra!  

03.Jun.17

Martins Júnior