segunda-feira, 1 de maio de 2017

NO DIA DO TRABALHADOR – UM PADRE OPERÁRIO: “TENHO UM CANCRO”


Cento e vinte e oito anos passaram sobre a ponte oceânica que, desde 1889, continua a unir cidades e continentes. Por todo o mundo ecoaram hoje as vozes de Chicago. Também aqui em Portugal. Vozes carregadas de espinhos e dores, mas tornadas leves e soltas pelo esforço de gerações e gerações de homens e mulheres em defesa da dignidade do trabalho face à supremacia do capital. Daqui de longe levanto a bandeira rubra do sangue, do suor e das lágrimas que os filhos dos  trabalhadores  empunharam e continuam a segurar num mundo adverso em que as pessoas são reduzidas a máquinas escravas, descartáveis, de fabricar o metal sonante que sobredoira as mansões dos ‘donos disto tudo’. Homens e mulheres, jovens e anciãos de mãos calosas, rosto enrugado e gasto, mas de olhar desperto como o abrir da manhã, merecem hoje e sempre o pódio dos vencedores – heróis anónimos do trabalho braçal.
No mesmo degrau dos construtores da justiça global, irmanam-se num só abraço os titulares do trabalho intelectual e artístico, arquitectos, engenheiros, escritores, médicos, enfermeiros, professores, todos elas e elas autoras e actores do pensamento em acção. É este o seu dies natalis que importa efusivamente festejar.
É aí que vejo e exalto soberanamente a personalidade de um homem que baixou anteontem à morada comum dos mortais: Joaquim Carreira das Neves, Mestre jubilado de Teologia na Universidade Católica e, mais do que isso, padre humilde, caldeado nas humanas veredas da espiritualidade telúrica que nos deixou o Poverello de Assis.
Todas as vezes que saía do remanso do claustro, em Lisboa, era para encher de luz a mentalidade sombria de uma sociedade que se contenta com a roupagem dos mitos confortáveis da inércia mental. Quer através dos livros, quer em debates televisivos, quer ainda em  conferências de pendor coloquial, Carreira das Neves navegava da foz para as nascentes, procurando delas exaurir a interpretação cientificamente sustentada e, para os preguiçosos sonâmbulos da religião, agitava sem tréguas os alarmes e os desafios da verdade original decorrente das fontes. Dos vários títulos que publicou, como prova demonstrativa do que acabo de afirmar, destaco O Coração da Igreja tem de Bater (2013) e A Bíblia no Século XXI (2016). As suas posições teológico-pastorais são testemunhos premonitórios daquilo que, anos depois, anunciou e continua a ensinar o Papa Francisco. Vertical, corajosa e lapidar é, entre outras, a seguinte constatação que nos legou, como eminente biblista que era: A Bíblia não pode ser tomada como um absoluto, arriscando-se a ser uma tirania à ,maneira do Alcorão de certos fundamentalistas islâmicos.
Tudo isto e muito mais deveria alcandorar-se hoje, 1º de Maio, em homenagem ao trabalhador intelectual que foi Carreira das Neves. E deveríamos tê-lo feito em vida. Por que ingrata tendência somos nós picados, que nos leva a subalternizar e esquecer – quando não, hostilizar, em vida - aqueles que são os nossos mestres e líderes do pensamento sólido e dinâmico, para só os recordarmos após a morte?... Enquanto vivos, actuantes, é que devemos segurá-los, para que os nossos passos caminhem iluminados e conscientes nas encruzilhados da existência. Neste pódio estão  intelectuais de primeira água, nacionais e estrangeiros, como Anselmo Borges, Bento Domingues, Dimas de Almeida, Leonardo Boff, Hans Kung, Pagola, Andrès Torres Queiruga, Castillo e tantos outros.       
            Deixo para o fim um episódio tocante (jamais o esquecerei) quando no Convento da Luz, em Benfica, convidei Carreira das Neves para vir à Madeira e também à Ribeira Seca falar sobre temas suculentos numa ilha ainda sombreada por mitos e tradições atávicas, ele respondeu-me assim, com a frieza de um cientista e com a aceitação descontraída de um aldeão: “Agora não posso. Tenho um cancro. Mas penso que daqui a dois anos, diz o médico que já poderei viajar de avião”. Passaram-se dois anos, passaram-se quatro e o avião levou-o para mais longe. Ficou, porém, sempre perto de nós, com a sua memória e os seus livros, pelos quais ouviremos a sua voz de cientista e aldeão, aquela voz frontal e amiga. Inesquecível!
            Honra e gratidão aos trabalhadores de todos os lugares e de todos os tempos!
           
    01.Mai.17
  Martins Júnior


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