quarta-feira, 7 de setembro de 2016

E BEM-AVENTURADOS TAMBÉM OS NÃO CANONIZADOS



Ainda pairam nos céus de Roma os ecos em revoada daquela manhã sonora de domingo. Nunca a modesta rapariga albanesa teria imaginado que as chagas sociais e as dores dos proscritos que ela ajudou a sarar ascendessem tão alto e tão sonante como no dia aniversário da sua descida às terras dos párias e dos marajás.
E chegaram até nós. Tenho seguido com interesse as opiniões que suscitou o meu último escrito. Bom sinal dos tempos, quando se interpretam e discutem temas tão marcantes como a canonização de alguém. Ao relevar a magnitude da obra de Madre Teresa de Calcutá, pretendi saudar o empenho pessoal, a doação inteira dessa mulher à nobre causa da Humanidade. No entanto sublinhei que, também na mesma medida,  é urgente analisar os gritos e as  fomes que perseguem o mundo, acentuando a dicotomia emergentes versus duradouras. É a diferença que nem sempre descortinamos entre pobreza conjuntural e pobreza estrutural, sendo certo que as soluções para estas últimas não podem ser as mesmas utilizadas para as primeiras. O que está em aceso debate é a eterna antinomia de sempre entre Caridade e Justiça. É verdade que não se prega a estômagos vazios, mas não é menos verdade que os paliativos de circunstância não resolvem a raiz do mal ínsito na medula das sociedades injustas.
Não foi por mero acaso que o próprio Papa Francisco no texto da proclamação da canonizada exclamou: “Ela fez sentir a sua voz aos poderosos da terra, para que reconheçam as suas culpas diante do crime  da pobreza que eles criaram no mundo”. É esta a maior “afronta” que dimana da obra de Teresa de Calcutá, embora muitos a desconheçam. E é precisamente neste “item” que alguns biógrafos, entre os quais o já falecido escritor Christopher Hitchen e os jornalistas Aroup Chtterjee e Donal MacIntyre, põem em causa o efectivo contributo da “Mãe dos Pobres” na erradicação da pobreza. Suponho que referir-se-iam à polarização dos conceitos: pobreza emergente - conjuntural - e pobreza duradoura - estrutural. A fome emergente requer Caridade de emergência, mas a fome estrutural exige  Justiça legislativa e Coragem sem tréguas..
Reflicto e partilho esta incógnita decisiva  e faço-o para trazer ao trono da consciência pessoal e colectiva tantos e quantos lutaram contra os regimes de opressão, contra as leis draconianas da escravidão que ainda hoje perduram a olho nu pelas nossas cidades. Gente de fibra que pagou nas masmorras o preço da sua sede de atacar as estruturas de uma  sociedade ruim, viciadas e assassinas, mas envernizadas de púrpura e incenso. Esses nunca conheceram o abraço ou o sorriso das multidões, mas foram tão sobrenaturais como as esculturas marmóreas beijadas pelos fiéis e alcandoradas pelas hierarquias. Não fossem os prisioneiros do Tarrafal, não lutassem os militares de Abril  e ainda hoje estariam os “velhos” de mão estendida aos filhos e netos para lhes darem uma côdea de pão. Não fosse a coragem dos salvadores do Povo, os criadores do Serviço Nacional de Saúde e ainda hoje estaríamos condenados a esperar a morte numa enxerga malsã. Não fossem os operários de Chicago, uns presos e outros mortos, e os homens, mulheres e crianças continuariam a moirejar de sol-a-sol, caídos de tísica no antro das minas.
E as Mulheres da estirpe de uma  Joana d’Arc, Catarina Eufémia! E padres e bispos, como Óscar Romero, assassinado no altar, António Ferreira Gomes, bispo do Porto, expulso de Portugal sob a ditadura  de Salazar e o silêncio cobarde do Patriarca Cerejeira, pelo “crime” de defender os camponeses da sua diocese contra os latifundiários e exploradores do Norte”
Seria um nunca mais acabar este cortejo de humilhados e ofendidos, mas gloriosos, Santos de maiúscula, que nunca foram canonizados. Lembro-me, sobretudo, daquele friso que todos os dias me acompanha, em lugar cimeiro, na biblioteca comunitária da Ribeira Seca – Padre António Vieira, Teresa de Calcutá ( já viu a sua hora de reconhecimento universal) Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Zeca Afonso, Luther King. E outros que quem me lê também reserva no altar da memória. É por eles que ainda sonho concretizar um Hagiológio  (Vida dos Santos) em que o testemunho sacro-cívico-social  constituirá a auréola trinitária que iluminou a face sempre viva da sua passagem pela terra. Uma auréola onde cabem todas as lutas, todos os calvários e todas as vitórias da Humanidade.
E se nosso Mestre chamou “Felizes os que Lhe deram de comer, os que O viram doente e O visitaram, os que  O encontraram sem abrigo e O receberam, também foi Ele – o mesmo! – que proclamou no Sermão das Bem-aventuranças: “Felizes os que têm fome e sede de Justiça… Felizes os que sofrem perseguição por amor da Justiça “!
Bem-aventurados os que lutaram contra a fome duradoura, contra o crime estrutural!

07.Set.16
Martins Júnior


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