quinta-feira, 29 de setembro de 2016

E JÁ PASSARAM TRÊS ANOS!


Daqui a um ano, já não  poderei repercutir a batida de Sérgio Godinho: Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Tua Vida. Reproduzi-a entusiasticamente – e avisadamente – há três anos, quando soou na ponte que liga o 29 de Setembro ao 1º de Outubro, o hino apoteótico da Primavera da Madeira, quando à meia-noite da ilha irrompeu no firmamento  o  Histórico “Set’Estrelo”  das sete Câmaras ganhas pela oposição ao quarentão poderio   da Região e aqui consignadas na autarquia da capital madeirense.
Tinha preparado para hoje, mais que uma saudação,  um enorme espelho para todos os autarcas então eleitos, onde se projectassem os actores confrontados com os protagonistas do filme, eles mesmos, os eleitos de há três anos. Seria uma retrospectiva na primeira pessoa: os planos, os sonhos, as realidades, enfim, um retorno à juventude, agora amadurecida, talvez sofrida, mas sempre vigorosa no mesmo afã de bem cumprir o mandato novo que lhes foi confiado.
Ao ler hoje  a oportuna reflexão de Alberto Olim, Presidente da Junta de Freguesia de Machico, não hesitei em repor aqui a mensagem que então dirigi aos novos autarcas, pela flagrante  actualidade   de que hoje se reveste. Ei-la:

 SAUDAÇÃO ÀS SETE AUTARQUIAS
E SEUS CORAJOSOS AUTARCAS

           Escrevo para vós, que sois jovens, na  idade e no ofício.
          Escrevo agora que iniciastes  um Dia Novo!        
         Na qualidade  de cidadão e  veterano de lutas antigas, de vitórias e derrotas que são as pedras da calçada de todo o lutador, quero fazer meu o abraço de toda a Madeira Jovem, que vós incarnastes, toda  vestida de alvorada, livre na  pele e no coração dos farrapos desse estigma  ---Madeira Velha, Madeira Nova --- que, durante quase quatro décadas,  intoxicou até à exaustão o corpo e a alma dos madeirenses. Envolvo também neste abraço outras gerações que, antes e depois de Abril, estiveram na vanguarda desse sonho, mas não tiveram a dita, como nós,  de vê-lo e senti-lo.
         Sois vós, Madeira Jovem, os promotores e ao mesmo tempo os procuradores desse direito intergeracional que é o de preparar o Arquipélago do Futuro onde quereis e tereis de viver.
         A conquista, ora alcançada, dos postos de comando e dos centros de decisão ultrapassa o 29 setembrista ou o quadriénio do mandato que vos foi confiado. Vai muito além e atinge o horizonte de uma outra vida, outra paisagem física, ambiental, humana. Numa palavra, o vosso mandato aponta para  uma Nova Ordem Regional.
         Por isso, mais que a derrota do velho regime, importa relevar e interiorizar a chama viva que o Povo vos confiou na maratona olímpica que agora começa. É preciso apagar o rasto viscoso que outros deixaram e, como diria Antero de Quental, “lançar o arco de uma nova ponte”.
         Vede, pois,  na cadeira do poder em que tomais assento, não o porto de chegada mas o cais da partida.
         O “Set’Estrelo”  vitorioso do poder local na Madeira e Porto Santo não poderá trair quem primeiro o acendeu: os vossos constituintes, o Povo Eleitor. Como num grito do Ipiranga, fez-se a Primavera Madeira. Não a deixeis resvalar para uma qualquer  Primavera Árabe, seja nas candidaturas de Partido, seja nas candidaturas de Coligação, sabendo sempre que o vosso sucesso é o sucesso de toda a população, mesmo daquela que não votou na Mudança. E, da mesma forma, o vosso falhanço sê-lo-á o de toda a população , será o retorno aos muros da vergonha, da ditadura e do medo que acabais de derrubar.
         Estais agora sob os holofotes de toda a gente, milhares de olhares estão a contemplar-vos aqui, no Portugal Insular, no Portugal Continental e até no estrangeiro entre a diáspora madeirense que desejou e acompanhou ansiosamente esta vitória.
         Termino a minha saudação  com dois apelos, nascidos de muitos anos de veterania solidária:

         PRIMEIRO:
         Se é altíssima a soberania nacional e alta a autonomia regional, não menos alta e nobre é a autonomia do poder local. Este deverá ser sempre  o fio de prumo de todas as vossas decisões. Consegui-lo-eis instaurando, mais que a democracia representativa, uma outra maior, a democracia participativa, em que o Povo ocupe a centralidade na mesa das vossas decisões e no chão do vosso território.
           
            SEGUNDO:
         No mesmo tom da canção de Sérgio Godinho, que a toda a hora ouvia esta frase batida “hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”, assim também, desde o instante da tomada de posse, ressoe no vosso sentir e no vosso agir este pregão: “Lembra-te que hoje é o primeiro dia do resto do teu mandato”. Quatro anos passam-se mais depressa que a névoa da tarde. E o que é preciso é que,  ao fim deles,  renasça outra vez convosco a  manhã  da Primavera Madeira!
        
Machico,  1 de Outubro de 2013
Boa sorte e um abraço
___________________________________________________
Se em 2013 trauteei a canção de Godinho – “Hoje é o primeiro dia do resto do teu mandato” – passados três anos e faltando apenas UM  para a definitiva prestação pública de contas, apenas direi “Hoje é a primeira hora do resto do teu mandato”.
29.Set.16
Martins Júnior








terça-feira, 27 de setembro de 2016

TURISMO-VIP SEM SAIR DAQUI – No Dia Mundial do Turismo

         
        
           Mergulho no oceano que eu sou
         
          Timão e timoneiro
          Vento e veleiro
          Já sei para onde vou
          O sonho é amar e a sede é ver
          Paisagens-longe cidades presas
          No alicerce das profundezas
          Do meu ser

          Que bem maior é não saber nadar
          Para tocar os intocáveis corais
          Lá nas cavernas ancestrais
          De histórias não contadas

          Búzios de outras eras
          Ostras que escondem pérolas
          Nascidas dentro de nós
          Agarradas como heras
          Ao troco que somos e à memória de avós

          Esfinges do Egipto
          Pirâmides pontiagudas
          Onde repousam o cântico e o grito
          Das cinzas mudas
          Das estátuas que já fomos

          De tanto ver e já cego
          Não largo o leme e navego
          Navego
          Entre sargaços de seda índia
          Ilhéus de sândalo perfume capitoso
          Como a cambraia que borda a fímbria
          Das deusas dos Amores

          Anémonas de mil cores
          Trazem  o leque aberto
          Dos passados horizontes
          E os do futuro incerto

          No planeta oceânico
          O dia é sempre noite
          E a noite é sempre dia
          E o sol
          Nasce quando o meu olhar o chama

          Não quero outro guião nem outro panorama
          Na agenda viageira
          Senão a brisa ligeira
          E o sem-medo de esconjurar o abismo
                                      
          Quem me acompanha
          Na barca de turismo
          Sem sair daqui
          Ao mar e à montanha    
          Que há dentro de si ?!

27.Set.16
Martins Júnior

domingo, 25 de setembro de 2016

“EXTREME SAILING” NA QUOTIDIANA BAÍA DA VIDA – do latim “spiritus” para o português “vento”, “espírito” e “alma”


 Içaram as velas as jóias da Coroa

De Sagres ou de Lisboa
Das sete partilhas do mundo
As águias marinhas
Mais altas que os promontórios
São agora argonautas-rainhas
Mais que Ulisses, Neptuno e Marte

Brasonados do Império
Ninfas altivas cobiçadas
Saídas das telas de arte
Perfilam-se na amurada

Tangem trombetas de metálico alarde
E a Real Armada
Ribomba e troa
O canhão da proa
“Por El-Rei – é hora da largada”!
Troncos tisnados, braços de Atlantes
Agarram-se ao cordame
E do cais saltam olhos mareantes
Agitam a baía e o velame
Arraial arraial
Que vão partir as naus do estaleiro real

Mas nem um sopro nem um ai
Nem um lenço branco nem um mastro alto
Das naus reais nenhuma sai
Entrou o cais em sobressalto
Granadas explodem nos canhões
Retiram-se os barões
Toca a rebate a assembleia
Decreta-se a morte ou a cadeia
Ao vento que fez greve
E ao mar que não se alteia
Abrem-se os cofres despejam-se milhares
Mas não  comovem os ventos nem os mares
A multidão na ribalta da amurada
Torcendo os braços da varanda
Grita e enfurece
“A maré está cheia e o barco não anda”.


Murcham as velas nos mastros
Os atlantes estão de rastros
E as águias reais já não sonham com os astros

Por que o vento não se decreta
A alma não se compra
Não se vende o amor-motor
E não tem preço o sopro criador
Escrita nas ondas uma voz discreta
Sussurra como um grito em linha recta:
Tendes cascos de ouro velas de filigrana
Escotas e lemes de prata
Tendes o  aquático trono da fama
Tendes o corpo milionário do magnata
Tendes tudo
Menos  o que é gratuito e forte
A alma inteira e o vento norte
  ´´´´´´´´´
Lá longe, fora  da barra
Afrontando o mar bravo e o perigo
Um frágil batel que se desgarra
Corre veloz por sobre um sonho antigo

A alma o leva
E o vento o alevanta
Ironia sem limite
Solitário proletário
Fez da vela a sua manta
E é  maior
Que  as esquadras estagnadas
No fundo orgulho rotundo

Porque é o vento e é o amor
Quem leva a “casca de noz”
Às ilhas do outro mundo

25.Set.16
Martins Júnior   
    





sexta-feira, 23 de setembro de 2016

PAZ DE PAPEL vs. PAZ DE CORPO E ALMA


Nunca a Paz viajou tanto,  como na semana que acabámos de viver. Em aeroplanos vip, a abóbada planetária viu cruzar-se no firmamento azul do seu seio a branca pomba da Paz pousada nas asas  dos aviões-de-bandeira.  Foi a Assembleia das Nações Unidas, foi a Assembleia inter-religiosa em Assis, foi a Conferencia de Bratislava, foi o Acordo de cessar-fogo na Síria e outros "sínodos" político-religiosos, desde Nova York a Paris, desde Assis ao Médio Oriente e, ainda no coração da América Latina. Se acrescentarmos  a apoteose de braços e cores dos Jogos Olímpicos, dir-se-ia que estamos no melhor dos mundos, no advento da Pax  Universalis, pomposamente lavrada e autenticada em sumptuosos salões.  
  Mas as juras de amor fraterno não fazem a viagem de retorno, quase sempre não passam dos pergaminhos que ficaram ciosamente embalsamados no berço onde nasceram, tal como  a primeira pedra enterrada no terreno expropriado para projectos que nunca de lá sairão. Caso mais fremente não há do que a pax síria, onde a fé muçulmana de El Assad versus rebeldes de Alepo  se embrulha nas “fés” russo-americana, ambas de sentido radicalmente oposto,  para fabricarem as bombas que tudo destroem e matam vítimas indefesas. É que ninguém quer abdicar dos seus paiós, uns capciosamente camuflados, outros ostensivamente abertos, sejam as finanças, sejam as alianças espúrias, as hegemonias, sejam enfim  as armas – a que  tudo se reconduz.
Esta breve reflexão serve para  pôr ao rubro o contraste entre as encenações  vistosas  dos “teatros  da paz” ( leia-se “teatro de guerra”) e os caminhos e as veredas pedregosas que conduzem à verdadeira Paz, fruto de muito sangue e maior sofrimento de décadas, senão mesmo de séculos. E abro logo os dois cenários contratantes:
Por muito que brade ao mundo o Papa Francisco em Assis de Itália o pregão –  quente e eloquente como nenhum outro! –  do Consenso Mundial sob o sinal da Fé, dificilmente os primeiros destinatários, cardeais, bispos e similares alistar-se-ão na sua generosa cruzada. Digo o mesmo (até com maioria de razão) das 400 religiões que se assentaram na grande Assembleia em terras do Poverello. Porque os magnatas-donos  da religião não estão sós. A fé num  mundo institucionalizado dificilmente se liberta das vestes do poder e dos interesses mundanos. Permitam-me a expressão, mas tenho que dizê-lo: de manhã servem a Deus na liturgia pontifical, mas à tarde e à noite servem o Maligno sentado nas cadeiras dos poderosos. Como pode uma Igreja oficial chinesa, comandada pelo Estado, juntar-se a uma Igreja livre, crística, despida da prepotência dos ditadores? O que trago dito aplica-se exactamente à Igreja Ortodoxa moscovita. E a outras crenças multiplicadas como cogumelos  por esse mundo fora. “Ninguém pode servir a dois senhores”.  Por isso – a não ser que se trate de  gente de Fé inquebrável e assumidamente sacrificial, como nalguns casos, depois proscritos pela aliança Igreja-Governo – sou um céptico, militante descrente de magnas assembleias religiosas em que os tratados de Paz vêm curtidos com as sotainas escarlate dos seus subscritores.  Com quem conta Francisco Papa para a Via Crucis, a caminho do Gólgota,  de onde ressurgirá a “Misericórdia”, o Perdão, o Consenso, os nomes duradouros da Paz?!
. Por outro lado, cruzo-me com  a “Festa da Reconciliação” nas pampas da Colômbia. Cinquenta e dois anos de ódios irreconciliáveis foram definitivamente transformados no abraço impossível para o mundo, mas sentido, amado, proclamado entre os guerrilheiros  camponeses das aldeias e as urbanas tropas governamentais, com o expresso exemplo pessoal do  comandante “Timochenko”, pelas FARC, e o  presidente José Manuel Santos, pela Colômbia.   A “bênção” que selou este milagre foi o sangue  perdidamente derramado  e hoje reconhecido como o percurso definitivo para a concórdia das gerações futuras. Os acordos de Paz não são feitos de papel, mas de homens e mulheres, conscientes, pela dura experiência, de que precisam, não de balas e canhões, mas de pão para a boca e cultura, a tal fé, para o espírito. A gravura-supra bem podia ter por legenda: “Abaixo as armas – Acima a Paz”!
Quererá  qualquer de entre nós, no seu próprio meio,  alistar-se nesta campanha?

25.Set.16

Martins Júnior

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O DIA EM QUE A NOSSA MEMÓRIA É A FACULDADE DE ESQUECER


Pertence à literatura paralela, sobejamente conhecida, o axioma supra-citado. Achei adequado trazê-lo hoje ao nosso convívio, para dele extrairmos ilações úteis, coladas a nós próprios sem que disso tomemos inteira consciência. Dotada de incontáveis e misteriosos megabytes, a banda larga da nossa memória chega a um dado tempo crono-psicológico em que os neurónios são obrigados a “descarregar” informação acumulada para dar espaço a novas mensagens que, por sua vez, conhecerão o adequado “cl”. É o normal processo neurológico em marcha. Hoje, porém, 21 de Setembro, a comunidade científica e nós, seus utentes, nos confrontamos com um outro processo – este, degenerativo e destruidor da personalidade – chamado síndrome de Alzheimer, cada vez mais disseminado nesta era de inimagináveis conquistas tecno-científicas. Ironia das ironias: quanto mais se avança na grande escalada do elixir mágico que cura e transcende os vírus malignos, mais se degrada e apodrece a potência criadora da mente humana! Caso para recordar com Luís Vaz de Camões: “Vejam agora  os  sábios na Escritura/ Que segredos são estes da Natura”…(Lus. V,22).
 Uma palavra de respeito e profundo apreço por aqueles que, no decurso de anos e anos de luta e sofrimento, esgotaram-se, ao ponto de não  se reconhecerem, nem a si, nem aos outros. Na mesma linha e com redobrada homenagem a todos quantos dedicam todas as suas forças como cuidadores incondicionais dos seus pais e avós.  O diário El País, na sua edição de hoje conclui que “em 94% dos casos, os parentes tomam a seu cargo o cuidado da pessoa que sofre dessa enfermidade” e constata a extraordinária entrega de Juan Pedro Garcia, de 41 anos de idade, que desde 2009 deixou tudo para cuidar da sua mãe Antonina Hernandez, de 82 anos, afectada pela fatídica doença. E outros casos haverá entre nós.
Mas o Alzheimer  - ainda  um outro! -  que me persegue todos os dias, cai-me hoje diante dos olhos e arrebata-me os nervos. Ao contrário do Alzheimer fisicamente visível, estoutro, em vez de fazer-me esquecer, desperta e aguça-me a memória, faz-me bradar ao silêncio do meu quarto e impele-me a sair à rua, pegar nas armas da consciência humana e denunciar “até que a voz me doa” o Alzheimer auto-provocado, insensível, globalizado. Toma outro nome, eufemisticamente designado por “Indiferença”.  Foi  Francisco Papa quem mais ostensivamente  denunciou a todo o planeta, sobretudo aos dominadores dos povos, a “Globalização da Indiferença”! Com a autoridade moral e factual que lhe assiste, lançou o ataque frontal contra esta espécie maligna do Alzheimer pré-elaborado, assumido, legislado.
Para  os  amigos que me acompanham dia-a-dia à mesa deste convívio vespertino, nem é preciso especificar. Tanto quanto eu, vêem e sentem o maquiavélico tropel dos que fecham os olhos, tapam os ouvidos e anestesiam o espírito diante do que se passa à porta de casa. Poderia lembrar todo esse estendal de Congressos, Cimeiras, Protocolos, Acordos de cessar-fogo – assinados hoje e  insolentemente varridos amanhã da memória e dos actos! Os magnatas da finança metidos no bunker dos  offshores e dos bancos que devoram as poupanças  dos lesados;  e estes, por sua vez, que querem sangrar o povo, exigindo-lhe devoluções que não lhe dizem respeito.
Na esteira do Papa Francisco, aqui entram os “sacerdotes e levitas” que vêm o samaritano moribundo e dele se esquecem passando ao largo. Entram os que, armados de “misericórdia” até à gola,  lêem nos púlpitos o Evangelho  e  deixam-no no congelador das sacristias para voltar a tirá-lo  no dia seguinte, mecanicamente, sem memória nem coração, num ritual de contrabandistas refinados, contumazes, o que nos  provoca mais raiva que tédio. O seu silêncio cúmplice, na palavra e na acção, fazem deles narcotizados profissionais do Alzheimer global.
E nós, também, cada um de nós, no recanto mesmo  longínquo deste mundo doente por opção, decidamos  atacar esse vírus da inércia e do laxismo, para  nos mantermos imunes, sempre  de memórias vivas,  vigilantes e saudavelmente interventivos.

         21.Set.16

         Martins Júnior

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

DIA DE ANO NOVO NA MADEIRA – Alvíssaras pelo novo ano escolar!

        
        Também pensei  ajuntar o subtítulo “A primavera voltou  no Outono”. Olhando para os mais novinhos, até lembram o chilrear da passarada pousando timidamente sobre o chão cinzento dos pátios  escolares.
         Será  tudo isto e muito mais o que estava anunciado por toda essa ilha fora,  incluindo o Porto Santo. Um dia grande e um Grande Dia! Quantos de nós sentimos o convite – e, mais que convite, o apelo – de demorar o nosso olhar, pouco que fosse, diante dessa revoada saltitante de milhares de crianças, adolescentes e jovens ( 48.000, dizem as estatísticas) e apreender-lhe o imenso mundo circular que se esconde por detrás da ribalta do palco aberto deste 19 de Setembro?!... Certamente milhares ou milhões ficarão presos, hoje à noite,  nos estádios de luz e  sombras dos televisores, devorando avidamente os volteios e rodeios do esférico de couro que não tem sentimentos  nem autonomia. Mas  o dia de hoje é maior, mais belo, mais emotivo que as piruetas fugazes de uma hora e meia de entretenimento. Chamo-lhe DIA DE ANO NOVO NA MADEIRA!  Porque é todo o mundo, é toda a história do amanhã, é toda a vida que recomeça. E re-começar é partir de novo, com redobrado ânimo e sobredourada esperança no futuro.
Abeiro-me do varandim que dá para aquela escola – quando digo aquela escola quero dizer todas as escolas. E fico expectante com um misto de sonho em chama e, ao mesmo tempo, de arrepiante pavor de mergulhar naquele lago dos novos inquilinos que ali chegam. Corajosamente seguro-me no parapeito  do terraço   e  que vejo eu?
      Naquelas crianças buliçosas toco a candura da flor que se abre ao sol… leio os cromossomas hereditários dos progenitores… deparo-me com as arestas assimétricas da sociedade, com as carências congénitas de umas famílias  e os  saudáveis ambientes de outras… consigo lobrigar a ingenuidade pura dos infantis caloiros e os instintos desviantes de “veteranos”,  prontos a envenenar o ar que os incautos respiram… entontece-me a vista e o cérebro ver aquela babilónia desigual em turbilhão massificado… o transplante de “bebés” arrancados à família e à sua anterior  sala de aula que ficou vazia… incomoda-me a sensibilidade (ou a falta dela) de pais e responsáveis que vêem na reabertura do ano lectivo o alívio de quem entra em férias domésticas… E à pergunta “que vão ali fazer aqueles milhares de seres humanos?”, adivinhar o eco imediato da resposta: “estão ali para aprender o  Código da Grande Estrada da Vida”… Tudo isto me faz entender que estou (estamos) perante o “macrocosmos” da história do futuro. Tratados de sociologia, hereditariedade, economia, psicanálise, pedagogia, história de civilizações ---  está tudo ali!
E como reagem os adultos perante a vastidão e complexidade deste caleidoscópio humano ? – eis o meu maior pesadelo. Chega o “dono” do prédio, (chamam-lhe secretário) enfatuado de proa e com  ar afivelado, espera as ensaiadas palmas dos seus “feitores” e, sem uma nesga de sensibilidade, passa sobre todo este campo de flores, como um tractor sobre calhaus amorfos. E manda, austero,  corta salas, desertifica os centros rurais, divide cabeças de alunos pelo coeficiente compulsivo de cabeças de tais ou quais professores, encaixota-os em armazéns superlotados, impõe programas descarnados, talhados nos subterrâneos da vida concreta e, por fim, obriga professores ( também eles, pais e mães) a formatar flores primaveris  até fazê-las autómatas, máquinas de calcular, sem alegria, sem autonomia, sem saúde global.
O que trago escrito no parágrafo anterior  pode (e deve!) encontrar, de uma forma explícita e mais impressiva, em artigo publicado no “Funchal-Notícias”, da autoria do Prof. André Escórcio. Aí, numa linguagem que só  fala quem “tem um saber de experiência feito”, encontrará um repositório exaustivo sobre a renovação necessária de todo o sistema educativo. Obrigado, Professor!   
No entanto, hoje é dia de festa e o sol nasce na fímbria do horizonte.
 Mas a festa só haverá quando interiorizarmos  nós, os adultos,  a verdadeira semântica do primeiro dia da reabertura das aulas.. Ela é maior e, de longe, mais determinativa que os fogos fátuos dos foguetes que rompem a noite de São Silvestre.  Para toda a comunidade escolar, votos infinitos de empenho e amor à Nobre Causa de erguer Homens e Mulheres do amanhã!
Por isso,  para a construção do Futuro que sonhámos,  escrevo – e repito - HOJE É DIA DE ANO NOVO NA MADEIRA.

19.Set.16
Martins Júnior        

sábado, 17 de setembro de 2016

HERÓIS VIVOS…”MAIS DO QUE PROMETIA A FORÇA HUMANA"

Era um poema de Sofia…era uma sinfonia de Mozart,, uma escultura de Rodin, um quadro de Rembrandt… era tudo isso e muito mais que eu queria plasmar nesta noite tropical.  Estando aqui perto, também estou lá longe, no Rio, em Guanabara, no apoteótico Maracanã.
E o poema é a dança em espiral dos corpos ondulantes… a sinfonia é o ritmo cadenciado de quem corre ligeiro nas pistas do estádio… a escultura é a bola multicolor do voleibol sentado, enfim, o quadro é o Olimpo dos deuses onde brilham como coroas de estrelas todos aqueles que souberam mudar a fatalidade  em oportunidade, fizeram do seu pranto um cântico de magia…  e  o que fora uma inexorável descida aos abismos transformaram num voo triunfal directo às alturas!
           Olho os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro. E  penetram em mim duas correntes  de ar puro – uma, fria de gelar e a outra, quente de sonhar. Num relance superficial e fugaz estremeço perante os corpos que desfilam,  fisicamente  diminuídos, parcialmente  amputados daquela pujança homérica  dos corpos perfeitos. Um deles poderia ser o meu… Mas no decurso do certame, uma onda maior traz-me o calor contagiante do quanto pode a força humana, sacode-me os neurónios o milagre vivo – mais um! – da energia anímica que dá asas aos membros decepados e faz abrir dentro de nós a fonte da esperança renascida, daquela que não se deixa enrodilhar na manta escura do desânimo, senão mesmo da depressão sem retorno. Confesso que me enternecem e, ao mesmo tempo, me alavancam o subconsciente latente activo as diversas provas em que participam os heróis paralímpicos. Chamo HERÓIS, estes maiores que os outros que os precederam. nos  JO/16.  Porque foi preciso um poder cerebral muito maior  e uma vontade indómita para superar os obstáculos das fatalidades supervenientes no dealbar da juventude. Bem andou, pois,  o governo português fazendo-se representar pelo ministro Tiago Brandão Rodrigues e pela Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com deficiência, Ana Sofia Antunes, a primeira governante invisual do país.
Mais vasto, porém, é o mundo dos Paralímpicos de outras esferas do saber humano. Trago ao universal Maracanã da História tantos outros que investiram o melhor de si próprios, “mais do que prometia a força humana” (Lusíadas, Canto I). Nas praias da Grécia Antiga lá estava Demóstenes, tartamudo de nascença, metendo calhaus na boca para vencer a gaguez e  tornar-se mais tarde  no Príncipe da Oratória Helénica. Vejo passar Beethoven que, no tormento da surdez, compôs a magnífica “Quinta Sinfonia”. Penso no poeta Jorge Luis Borges, cuja cegueira lhe abriu paisagens infinitas. Dou mais uns passos e, aí perto no Brasil, contemplo em 1972, extasiado e mudo,  (estou a vê-las) as estátuas monumentais em pedra-sabão que os braços paralisados do “Alejadinho” (António Francisco de Lisboa), filho de mãe escrava e atacado de doença degenerativa fatal,   deixaram imortalizadas, desde o séc.XVIII, no átrio do templo de Congonhas, São José do Ouro Preto. Actualmente, emerge, sem sombra de dúvida, o conhecido físico e cosmólogo britânico Stephen Hawking, a quem a esclerose lateral amiotrófica não impediu de alcançar o topo dos cientistas vivos.
         E aqui na Madeira, vejo o nosso dramaturgo Baltazar Dias que, mesmo pobre e cego, nos legou, desde  o séc.XVI, as peças de teatro, sobretudo os Autos, largamente representados em Portugal e no Brasil.             Mais forte e impressivo, porque junto de nós, aqui e agora, agiganta-se, como um facho olímpico, a beleza coreográfica do “DANÇANDO COM  A DIFERENÇA””,  do grande criativo Henrique Amoedo, benemérito da Ilha, que ajudou a vencer barreiras inatas e projectá-las em espectáculos de estética impar correndo mundo!
É incomensurável o estádio dos  Paralímpicos ao longo da História, inesgotáveis são as suas pistas, indescritíveis os seus segredos energéticos. Por isso, curvo-me, emocionado e, mais do que isso, agradeço, o mundo inteiro agradece e irresistivelmente interioriza a lição memorável dos Heróis – Todos, particularmente Os Não Medalhados – Paralímpicos/16, deuses do Olimpo regenerador dos nossos tempos!

17.Set.16
Martins Júnior

     

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

MACHICO E SETÚBAL NA CADEIA DO LIMOEIRO


Admirável Mundo Novo! – o grito de espasmo e de espanto  sai-nos da boca quando diante dos nossos olhos se abrem os prodígios da tecnologia presente e futura. Mas hoje, 15 de Setembro, o título proclamatório de Aldous Huxley volta-se-me  ao contrário e expande-se, iluminado, por sobre  a  paisagem do passado. Mais precisamente na grande passagem de nível entre o século XVIII e o Século XIX. Alguém, porventura, expirará um enfadonho bocejo: “Que mau gosto esse de estagnar nas charnecas do antigo”… Pura engano, digo eu. Romper por entre as brumas do tempo esquecido, como quem desbrava uma floresta espessa e intransponível, para ao fim descobrir mundos e personagens tão iguais  às  nossas, com a mesma “ânsia de subir e maior cobiça de transpor”, diria Goethe, - é uma aventura magnífica, dolorosa na sua marcha mas infinitamente compensadora.
A lâmpada acesa desta introdução tem a ver com o encerramento das comemorações do 250º aniversário do  nascimento desse fulgurante talento sadino que dá pelo nome de Manuel Maria Barbosa du Bocage  (1765-1805) efeméride solenemente assinalada em Setúbal, sua cidade natal, durante o ano inteiro. A esta luz convido-vos a rasgar as trevas de quase três séculos de história. Chamo-lhes trevas porque, de verdade, muitas foram as legiões de zombies agoirentos que quiseram estrangular a memória gloriosa de um dos maiores poetas de Portugal e enterrá-lo definitivamente  nas masmorras  de onde não mais se via o sol.
Estou a falar do grande poeta sadino, talentoso sonetista, na esteira de Camões, o qual a uma cultura pós-clássica de fino quilate aliava a polivalência criativa reservada aos espíritos superiores. Bocage juntava, com a mesma elegância e mestria, o lirismo pré-romântico e a azagaia satírica, verrinosa, contra o Ancien Régime da época da Inquisição ao serviço da prepotência monárquica. Por isso, tanto o malsinaram e apedrejaram, tendo de sofrer por várias vezes as algemas da cadeia do Limoeiro, em Lisboa. E de cada vez que saía, sobrava-lhe mais coragem para impetuosamente assestar as farpas da crítica contra os ditadores de então. Quiseram destruir a sua obra, mas o que apenas conseguiram foi catalogá-lo como um vulgar arruaceiro, contador de anedóticas obscenidades. Mas hoje, ei-lo  reincarnado e redivivo no seu fulgor original. Pena que não o conheçamos no seu verdadeiro esplendor.
Mas para nós, gentes de Machico, Bocage não se confina às margens do rio Sado que banha Setúbal. Ele passa por aqui, pela nossa baía. Mas como? – estacarão os que consideram o passado um fóssil sem nome. Aí está o “admirável mundo novo” essa aventura de redescobrir-nos a nós próprios na evocação dos nossos maiores. É que Barbosa du Bocage, oriundo embora da burguesia francesa, cruzou-se com um jovem de Machico, de origens humildes, chamado Francisco Álvares de Nóbrega. (1773-1806).  A antonomásia por que é conhecido – “Camões Pequeno” – esconde (e, ao mesmo tempo, desvenda) o enorme pensador, filósofo, tradutor, satírico e, acima de tudo, o exímio cultor do soneto, género em que mais se notabilizou. Álvares de Nóbrega, também ele, aqui na ilha, precursor e bandeirante dos ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – coube-lhe seguir as mesmas pisadas de Bocage, arrastando nos pés os grilhões das masmorras do Limoeiro. Aí conheceram-se, companheiros da mesma cela insalubre, “esta estância abjecta”, como ele próprio escreve.  Aí tornaram-se amigos e, mais tarde, fora da prisão trocaram dedicatórias que ainda hoje perduram. Deixarei para a semana do “30 de Novembro” a reevocação do “Nosso Camões”.
Hoje, quero relembrar um acontecimento notável ocorrido em 30 de Maio de 2007, na própria cadeia do Limoeiro, (actualmente sede do CEJ,  Centro de Estudos Judiciários) onde foi selada, de forma condigna e bem merecida, a geminação entre a  nossa “EFAN – Estudos Nobricenses” e a “Associação Bocageana de Setúbal”. Foi uma data inesquecível, plena de poesia, canto e imagens: de Setúbal, veio uma distinta representação de músicos, professores e historiadores, chefiada pelo abalizado investigador, Dr. Daniel Pires. Da Madeira, lá estivemos muitos amigos e cultores do nosso poeta, uns cá de Machico e outros, muitos outros madeirenses residentes em Lisboa. Recordo a especial participação do grande admirador e declamador, o amigo Alexandre Aveiro, que  emprestou a voz e a expressiva interpretação aos sonetos de Francisco Álvares de Nóbrega, enquanto os setubalenses se encarregaram da idêntica tarefa em relação a  Barbosa du Bocage. A foto assinala a assinatura do Protocolo de Geminação na mesmas instalações da cadeia do Limoeiro: Daniel Pires, pela Associação Bocageana e, pela “EFAN”, Martins Júnior.
 Seria impossível ver passar este 15 de Setembro sem abrir as janelas do espírito e deixar entrar no SENSO&CONSENSO  o abraço luminoso desses dois astros da literatura incarnada na acção e na luta por um mundo melhor, esse almejado “Admirável  Mundo Novo” que nos incumbe hoje construir, com o mesmo afã e a mesma resistência que eles investiram no seu tempo. Termino com um dos sonetos que Francisco Álvares de Nóbrega dedicou ao companheiro de desditosa cela, Manuel Maria Barbosa du Bocage.

“Versos que produzi, Cantor do Sado,
Ao tenir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado,

Vão, como os teus, em tempo desgraçado,
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro,
Com o fito mais no apoio do futuro,
Que no abrigo no presente às Musas dado.

De aparatoso adorno vão mendigos,
A mais alto remonto não se atrevem,
Macerados de aspérrimos castigos.

Dá que também teu nome exímio levem:
         Os génios hábeis da razão amigos
         Esta homenagem uns aos outros devem”.
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15.Set.16
Martins Júnior



terça-feira, 13 de setembro de 2016

DESDE 1992, UMA VOZ NA MADEIRA PARA TODO O PAÍS, EM DEFESA DO PODER LOCAL



         Não uma voz qualquer. Mas um grito de alerta, corajoso e vibrante, com o peso do Catedrático de Direito e a Autoridade suprema da Casa das Leis. Essa voz continua viva, ecoando nos areópagos do Poder Central, nas assembleias dos Poderes  Regionais e nos gabinetes de todos os Executivos.  Numa altura em que tanto se fala das competências dos poderes locais a propósito das escolas, da saúde, do ordenamento florestal para fazer face à praga dos incêndios, é urgente voltar a escutar o que decididamente defendeu o Prof. Barbosa de Melo no VII Congresso da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) em 1992.
         Deixou este país há oito dias. Têm-no exaltado as figuras gradas da política e da intelectualidade, realçando-lhe os mais altos  predicados no domínio da ciência jurídica, do Direito Administrativo, da robustez cívica  e moral. Tudo merece o Prof. Barbosa de Melo. Da minha parte, sublinharia o trato gentil e coloquial com que me recebeu em sua casa, em Coimbra, deliciando-me com a  “a satisfação de estar – assim dizia -  com o irmão do   meu querido e ilustre colega,  o Prof. Dr. João Manuel Martins”, nessa altura Juiz presidente do Supremo Tribunal Administrativo de Moçambique.
         É meu dever, porém, ascender a um patamar mais alto e aí revelar e relevar o sonho do Mestre  Jurista. Mais que sonho, era a sua paixão, uma espécie de desígnio gémeo da própria vida: o Poder Local. Não por mero acaso, mas pelo “saber de experiência feito” no difícil terreno das autarquias. O Prof. Barbosa de Melo tinha sido autarca no seu concelho, Penafiel. E muitas vezes lhe ouvia dizer com insistência aquele normativo que outros depois dele adoptaram: “Nenhum político dos Poderes Central ou Regional devia ocupar tais lugares sem primeiro ter passado pela experiência autárquica”.
         Mas ainda não é esta a pedra de toque legada pelo Professor ao país. É outra, que passo a enunciar:
         Realizava-se no Funchal o VII Congresso da ANMP, entre 7 e 9 de Maio de 1992, no qual tomei parte como presidente do Município de Machico. Sensatas e ricas de pensamento dinâmico,  duramente reivindicativo, foram as intervenções dos muitos autarcas de todo o Portugal ali presentes, em defesa da autonomia do Poder Local, pondo em aceso debate a dialéctica sempre inconclusa entre o centralismo teórico da governação e a especificidade vivencial de quem está próximo da população, o poder autárquico: assembleias, câmaras, juntas de freguesia. Na Madeira, essa questão ardia em lume vivo. Muito timidamente alguns autarcas madeirenses lá iam desfilando contidas e dissimuladas  lamúrias  sobre a forma como o governo regional tratava assuntos que  jurisdicionalmente lhes pertenciam.  Era o tempo em que o Governo Regional foi coagido a pagar coercivamente as dívidas contraídas junto do Governo Central, então chefiado por Cavaco Silva. Daí nasceu o horroroso Protocolo de Reequilíbrio Financeiro, por força do qual o presidente do GR obrigou as câmaras, mesmo as do seu partido,  a pagar tais dívidas. Concretamente, os municípios foram privados de  grande parte das verbas a que tinham direito do OE, só para pagar as obras inauguradas pelo presidente madeirenses. Esse e outros abusos fizeram-me subir à tribuna e, desassombradamente, denunciar: “Na Madeira só há uma única autarquia: a que está sediada na Quinta Vigia. O resto são meras dependências  dela”.
         Mas a que propósito vem aqui o Prof. Barbosa de Melo?
         Já o digo. Para a sessão de encerramento, fora convidado o Presidente da Assembleia da República. Quem? Precisamente Barbosa de Melo. Era enorme a expectativa de todos os participantes, aguardando ansiosamente a posição  da segunda figura do Estado Português sobre a matéria conflituante governo-autarquias, uma questão particularmente delicada em solo madeirense.
         E eis que surge o Mestre do Direito Administrativo e Presidente da AR. Depois ter delineado os contornos jurídico-constitucionais do problema posto, desata energicamente na defesa da autonomia do Poder Local, critica eventuais intromissões dos poderes centralistas na jurisdição das autarquias e remata com esta proclamação gigante, que despoletou um turbilhão de aplausos em todo o recinto: “Nenhuma decisão deverá ser tomada pelos Governos nem nenhuma obra realizada  na área do concelho sem o  conhecimento e a prévia apreciação da autarquia respectiva”.
         Foi, sem dúvida, o melhor troféu oferecido aos autarcas portugueses pelo presidente da Assembleia da República. Era o tempo em que não havia regras para a concessão de apoios financeiros aos municípios. Recordo o anátema do Autarca-Mor da Vigia quando sentenciava. “Para Machico nem um tostão”. Era o tempo em que não me doía a voz denunciando, até em Bruxelas, que no Comité  Europeu das Regiões e Municípios, a Madeira fosse representada por uma só pessoa, o presidente da Região, precisamente o maior adversário das autonomias municipais.
         É esta a imagem soberana que guardo do Grande Mestre. A sua dignidade, o seu rigor e, absolutamente, a sua coerência. Outros guardarão memórias diversas, mas esta constitui o legado mais decisivo numa terra tão escassa de território e tão desmedida de tiques centralizadores que ameaçam trazer à tona cadáveres há muito naufragados.

13.Set.16

Martins Júnior  

domingo, 11 de setembro de 2016

CUMPRIU-SE A HISTÓRIA: Ano CCCXXIV – Povos pequenos com histórias grandes

Considerem uma vulgar crónica do quotidiano aquilo que vou contar. Mas para quem penetra o invólucro das coisas banais encontrará mais do que o linguajar do quotidiano. Pelo contrário, descobrirá raízes centenares   que  ultrapassam todos os circunstancialismos aparentes e tocará com os seus dedos a vastidão do passado e a lonjura do futuro. É o que me proponho fazer.
Não tenho melhor introdução que o subtítulo em epígrafe. Todo o Povo tem a sua história. Longa ou breve, todos a têm. E quantas vezes é um Povo pequeno (ou o que o mundo assim considera) quem tem uma história maior!  O que há – copiando Fernando Pessoa no paralelismo que fez da Vénus de Milo e do binómio de Newton – o que há é pouca gente que dê por isso. E isso, para mal de todos, é o que corre na praça. Particularmente nas festas populares, em que se esgota o ritual na vulgaridade, no estouro ululante  a afrontar as orelhas dos mortais  e as nuvens quietas, enfim, a alienação suave como droga leve que não mata mas anestesia as multidões.
Na mensagem anterior anunciei um dos momentos altos de um Povo que o mundo ignaro considera povo baixo. A anunciação da Festa neste rincão suburbano de Machico contou com milhares de olhos - e oxalá tivesse penetrado na mente de quem dela teve notícia.
Cumpriu-se a História – com maiúscula! – a  deste Povo rural que  há 324 anos viu alevantar-se o seu monumento mais apelativo, na altura polo aglutinador de uma comunidade de “servos da gleba” curvados ao jugo dos senhorios: foi a vetusta Capela da Senhora do Amparo, mandada construir por Francisco Dias Franco nos idos de 1692. Diante do alçado frontal do pequeno templo, foi exaltado o património cultual da população da Ribeira Seca que, por ser tricentenário, está acima da  pré-centenária  Cova da Iria e das bicentenárias Senhora de Lourdes, em França, e   Senhor dos Milagres, em Machico. Não é, portanto, a gordura das superstições ou a manipulação das gentes que torna grande um Povo, no seu significado mais íntimo e num passado comum, como direi no final deste texto.
Mas a Festa cumpriu-se. Com descontracção e júbilo, mas também com conhecimento. No discurso da celebração litúrgica, o  Padre Mário Tavares Figueira,  historiou o lugar do Homem na visão holística do mundo, a partir da sensibilidade universalista  do “Guardador de Rebanhos”. No palco, também se cumpriu a História, no espectáculo de  crianças, jovens e adultos  desfilando as cantigas e bailados originais, evocativos dos passos mais marcantes da vida deste Povo.
         Mas não se ficou por aqui o guião existencial dos habitantes da  Ribeira Seca. Recordou-se a época de Quinhentos, nos alvores do povoamento, quando neste vale, incrustado no grande vale de Machico, se desenvolveu o cultivo da matéria prima para colorir os tecidos. É então aqui  que surge o nome de um famoso comerciante italiano, Paulo da Noia,  que fez proliferar as plantas produtoras do pastel,  afim de proporcionar matéria-prima para a indústria tintureira. Era produto de luxo e tão próspero  o negócio que  o próprio Rei D: Manuel I  incidiu tributos avultados, por parte de Paulo da Noia, em benefício da Coroa.
         Para surpresa geral, tive oportunidade de desenhar perante a população presente este tríptico sócio-económico-cultural – Paulo da Noia, pastel, indústria tintureira – fazendo-o coincidir com a nomenclatura, desde tempos imemoriais, de três sítios da Ribeira Seca: a Noia, o Pastel e o Tintureiro, todos justapostos na zona nor-nordeste do território “ribeirense”. As reminiscências ainda vivas da era de Quinhentos e a memória tricentenária da Capela do Amparo, orago da actual circunscrição religiosa da Ribeira Seca,  vieram sobredoirar a Festa, subvencionando aos participantes, a par da alegria contagiante, um acréscimo cultural de imprescindível relevância para a psicologia de um Povo que, embora pisado e excluído da roda dos grandes, tem um passado maior, no seu conteúdo factual , mas  sobretudo como estímulo para as gerações de hoje e de amanhã, afim de continuarem a escrever as páginas do Futuro, assim como as gerações de outrora deixaram escrita a História que nos foi legada.
Mais uma vez, no Ano CCCXXIV cumpriu-se a História!
E voltaremos a cumpri-la no Ano CCCXXV, a próxima Festa do Amparo, em 2017.

11.Set.16

Martins Júnior