quinta-feira, 17 de março de 2016

O HERÓI “SERVE-SE” VIVO! - Um mês, muitos anos sem ele

Eu sei que todos os dias são livros abertos na tumba de quem nos diz adeus. E muitos têm sido neste início de ano bissexto. Cada um com a marca distintiva da sua proximidade da nossa casa, do nosso ofício, do nosso peito. E quanto mais o tempo passa mais se aviva a necessidade de trazê-los connosco. Não para entronizá-los, mas para fortalecer-nos.
Por este necessário apelo interior, não posso deixar de chamar ao meu/nosso convívio aquele SENHOR que atravessou quase anónimo as veredas e atalhos desta ilha  -  o Padre Eduardo Freitas do Nascimento. Faz amanhã um mês que deixou  numa tumba humilde de Santana o livro aberto de uma vida. Das suas múltiplas funções e não menos extensos serviços, já escreveu na imprensa diária José d’Olim, numa linguagem de fino recorte literário e humanista. Por isso, da minha parte, limitar-me-ei a saborear o companheirismo de um colega e amigo que, na década de 60 do século passado, criou as novas centralidades de Piquinho, Preces, Ribeira Grande e Maroços,  no Machico mais  profundo, corporizando a sábia intuição do Prelado David de Sousa de descentralizar o monopólio das igrejas urbanas e conferir a autêntica autonomia aos habitantes da ruralidade, até então abandonados nas periferias montanhosas da ilha, sem estatuto de cidadania e, pior, desprovidos dos bens indispensáveis à dignificação da condição humana.
         Neste âmbito, guardo de fresco na memória visual o vigor denodado do Padre Nascimento em abrir caminhos onde as pessoas viviam no mais cru isolamento, captar água pura das nascentes para acabar com as viroses que não poucas vezes minavam os rurais que se abasteciam da água das levadas. Ele, entre Preces e Maroços, e o seu colega conterrâneo, Padre Manuel de Freitas Luís Júnior, na Ribeira Seca. Nessa altura, o padre era pastor, pedreiro, servente, mestre de obras, engenheiro, assistente social, curador de corpos e almas. Tempos duros!  Lembro-me da sua coragem em alcançar outros continentes, estendendo a mão aos emigrantes madeirenses lá residentes para poder construir as igrejas de Piquinho e Ribeira Grande. Falo dessa luta (hoje ninguém a conhece) porque também me toca de perto. Corria então o ano de 1962 e o Padre Nascimento pediu-me que eu, recém-ordenado sacerdote, o substituísse nas tarefas paroquiais e de que guardo sentidas recompensas de afecto e camaradagem para o resto da  vida.
Percorreu as “sete partidas” da Madeira em várias paróquias e, num certo dia, vi-o confidenciar-me a pouca consideração pela sua já debilitada situação etária com que a hierarquia eclesiástica lhe impunha serviços e deslocações  que a saúde  não lho permitia.
“O herói serve-se morto”  -  rigorosa expressão do grande poeta Reinaldo Ferreira, o mesmo da balada do “soldadinho que volta numa caixa de pinho”,  referência aos soldados mortos na crudelíssima guerra colonial.
Também o Padre Nascimento foi herói “servido morto” à mesa da hierarquia eclesiástica que o sugou até ao tutano e depois abandonou-o num canto anónimo, como ele, da Terceira Idade. Partiu-se-me o coração quando fui visitá-lo e deparei-me com um corpo frágil amarrado a uma cadeira no meio de tanta gente decrépita, deprimida. O trato na casa era exemplar em higiene, alimentação e cuidados. Mas aquele crucificado de olhar longínquo naquele, para mim, degradante figurino (embora por precaução médica) bateu-se-me como pedrada no peito, imagem que jamais apagarei da minha retina.
A memória torna-se repulsa, indignação, ao constatar aquilo que já vem de longe: a Igreja na Madeira trata,  como senhoria,  os seus padres enquanto eles têm para dar. Depois porta-se como madrasta desnaturada. E pensar que determinada habitação, no Funchal, foi legada por alguém, precisamente, para servir de última residência aos sacerdotes anciãos da diocese – e saber que o bispo “emérito” fez dela a sua exclusiva mansão – então a indignação atinge o cúmulo da revolta!
 Merece uma aprofundada e exigente reflexão a constatação deste caso.
Mas não quero desviar-me  deste que considero um dever e um conforto pessoal: trazer para a minha/nossa companhia um herói. Vivo! Imperativo! Ele não precisa, como nunca precisou nem  procurou os louros dos palcos transitórios. Nós é que precisamos  vê-lo e segui-lo na sua luta porfiada e consequente. Para ele, o amigo de peito, poderia inscrever-se na sua lápide a filosofia do eloquente provérbio árabe: A primeira recompensa do dever cumprido é ter cumprido esse dever”.

17.Mar.16
Martins Júnior


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