quinta-feira, 31 de março de 2016

NEM UM PAIOL DE PÓLVORA – NEM A SONOLÊNCIA DO CHARCO


“Guerra e Paz” – assim titulou Tolstoi o seu romance histórico. Hoje pego na capa para alterar-lhe  a sequência dos conceitos e formular uma outra dinâmica, inspirada no método científico: PAZ-GUERRA-PAZ, correspondente à clássica gradação: TESE-ANTÍTESE-SÍNTESE.
Embora estranha, à primeira vista,  vem esta equação a propósito do actual momento que Portugal atravessa. Após sucessivos anos de guerrilhas político-partidárias, quase sempre fratricidas, chegámos àquela estação do percurso em que se abandonam as sistémicas trincheiras de combate para retomar energias, de mãos dadas, face ao futuro. É uma nova filosofia de estar e servir o interesse comum. E de tal maneira que este ambiente de co-produtividade sócio-política incomoda  coercivamente aqueles que detinham as rédeas do poder e, na aparência, apresentavam-se como os promotores exclusivos da paz social. Hoje invertem-se os papéis: e é vê-los, os tais, nos parlamentos, nos congressos, ávidos de sangue (“temos de ser mais agressivos”, explodia esta manhã um dos  corifeus); de “bem- amantes”  passam-se a divorciados e rivais no “campo-pequeno” do grande poder.  Esta quase-alucinação atira-se de olhos atravessados, soturnamente estrábicos, quando vêm Presidente da República e Primeiro Ministro a remar para o mesmo porto do interesse da Nação.
Talvez que os mesmos que antes diabolizavam a CGTP e a UGT, quando juntas nas grandes  manif´s, agora fervam de impaciência quando as centrais sindicais parecem ter perdido (aos olhos deles) a vitalidade e o domínio da rua em peso.
Mas tudo não passa de um equívoco. Insanável, para quem assim se agita. Esquecem, sempre os tais, o percurso bio-social do Homem-em-situação, ou seja, a tríplice gradação existencial: PAZ-GUERRA-PAZ. Não se pode viver permanentemente em campo de guerra. Esta só vale como ponte instrumental  para a paz comunitária. Há tempo de resistir ao sono em combate, mas também há tempo de respirar o ar puro e justo que a grei conseguiu pela mão dos seus milícias representativas. Chamo aqui o pensamento de Arendt: “A violência pode destruir o poder, mas da violência nunca poderá nascer o poder”.  Tomo esta análise de filosofia política para, à sua luz, interpretar e medir o alcance de todo o  lugar da agressão, seja em que plano for da actividade humana.
Questionar-me-ão os meus “ímpares” amigos, acusando-me de fazer a apologia do contentamento fugaz, da inércia, enfim do ultra-liberal laissez faire, laissez passer.  A quem o dizem?!  É preciso desconhecer todo um passado (e um presente!) de luta  em que tenho navegado. O que me parece útil e necessário dizer é que um atávico e irresistível “cheiro a pólvora”  ( o termo tem direitos de autor bem conhecido) não segura nem o atirador nem o alvo nem o próprio campo de tiro. Quem assim pensa já está inscrito nas alas do Daesh, como suicida e assassino.
O importante e decisivo é a vigilância contínua. No esclarecimento,  na força motriz do pensamento, na denúncia, na voz, na escrita, nas redes sociais,  em casa e na rua, na escola e na igreja (assim faz o incansável Francisco Papa), no olhar atento e critico sobre as cúpulas do poder. É a isto que chamo o Poder Popular. Os governantes têm de temer (respeitar) os governados.  Nunca ceder um palmo à cobardia, ao jogo sujo de bastidores para salvar a pele. A pele somos todos nós.
Quando a solução única  for a “guerra campal”, a rua ou o assalto, então é sinal que,  no silêncio do oportunismo e da inércia, deixámos que nos amarrassem de pés e mãos. Não há outra estratégia eficaz que não seja a visibilidade coerente e consequente da meta comum, mesmo que por caminhos diversos.  Este é o sítio certo onde estamos e sempre estaremos: a Paz que nos segura, a guerra que nos redime e, de novo, a Paz no topo  da montanha – para depois recomeçar a mesma eterna  jornada, repetida no rotativo curso das gerações.
A vigilância operante de hoje será amanhã  a garantia da “Terra Prometida”.  Que ninguém perca o caminho!

31.Mar.16

         Martins Júnior

terça-feira, 29 de março de 2016

COMÉDIA SÉRIA, ONDE ENTRAM POLÍCIAS, BISPOS, PADRES E PORTAS SEM MISERICÓRDIA


  Não era  este o tema que reservei para terça-feira de Páscoa. Creiam, mesmo, que as mãos me pesam mais que noutros dias sobre este teclado de notas alfabéticas. A qual músico e a qual ouvinte agrada tocar ao piano repetidas dissonâncias ou escutar cacofónicas percussões?
         Por isso, quero  ser  breve. Desde logo, pela motivação circunstancial que amigos meus me trouxeram  acerca de um incidente ocorrido numa das pacatas nortenhas paróquias da Madeira onde foi  solicitada a PSP pelo respectivo jovem pároco.  Perante a minha quase indiferença em relação à notícia (para mim, mais do mesmo) fiquei amarrado à “provocação” dos meus amigos interpelantes: “Então não reage? Vai fazer o mesmo que a diocese que se esconde sempre nos silêncios cúmplices?”
         Aqui vai, pois, uma pequena amostra  do que penso e sinto.
         A Diocese, no feminino (em francês é masculino, le diocèse) é uma entidade abstracta, sobretudo entre nós, ilhéus. Não tem rosto, duvido que tenha alma, pelo menos, alma evangélica. Quando é chamada à colação,  não reage. Usa uma arma secreta: o silêncio dos cemitérios. Entretanto, ela  reconhece-se pelo corpo, nas suas estratégicas aparições,  nas paradas espectaculares, nos jantares e inaugurações governamentais,  nos arraialescos festejos de verão e nos partos litúrgicos pré-natais. De longe dá nas vistas pela anafada cinta vermelha e pelo régio brilho de uma cruz dourada, à imagem e semelhança dos brasonados oficiais do reino.
         Falo do que se vê a olho nu. E de mais alguma coisa que vi, sobretudo, nos três últimos titulares madeirenses, de entre os sete que conheci como inquilinos do Paço. Confrange-me -.mas não afecta a minha fé no Cristo Nazareno, anti-sinagoga e anti-diocesano – sim, confrange-me olhar a paisagem.  Numa ilha pequena, Madre das Cristandades de outrora, onde nos tempos mais recentes tem reinado a prepotência política, o favoritismo, a mediocridade e o nepotismo, esperava-se (e os madeirenses mereciam) um pastor verdadeiro, cuja mitra fosse cultura e talento e cujo báculo fosse “chicote no templo dos vendilhões” e, por outro lado, arrimo seguro para os mais débeis do seu rebanho, os proscritos dos poderes mundanos. Em vez disso, porém, coube-nos a sorte de uma diocese, corpo sem alma lá dentro. Diocese-Instituição. Há modestas autarquias rurais com melhor e mais responsável sentido de liderança, vigilante e humanista. Talvez até simples associações e colectividades de bairro, porque têm alma e dão o corpo às balas, em defesa da Verdade que professam.
         Pelo que acabo de dizer, nada me espanta o “lavar-de-mãos na bacia  de Pilatos” por parte da Mitra. Ê mais do mesmo. Um eclesiástico    subalterno  entende transgredir as mais elementares normas urbanísticas, outro espuma retaliação contra uma instituição centenária e exclui-a da igreja-mãe a que sempre deu colaboração; este chama a polícia, aquele abre-se aos apetites políticos de um governo que lhe faz obras faraónicas, inúteis – e onde está a Diocese? No retiro dos cenóbios ou na paz dos sepulcros. Um bispo toma conta de uma quinta, legado pio para abrigo dos sacerdotes na sua velhice – e que diz o hierarca diocesano?  Zero!
         Termino já, porque não me conforta nada pôr a secar na via pública o estendal de roupa esfarrapada que não aquece a nudez de ninguém.
         Ficaria, porém, incompleta a mensagem aos meus amigos interpelantes deste dia 29, se não citasse a resposta da Diocese – a mesma entidade sem rosto, não se sabe quem responde, se o Chefe ou se o vice -  que ofereceu como antídoto e consolo, no caso da paróquia nortenha, uma receita de “misericórdia” perante duas devotas que, a  pedido do jovem pároco, a  polícia devia expulsar da igreja.. Misericórdia! É o que está na moda neste ano de abrir de portas. Nem me apetece comentar. Seria uma boa deixa para Dante escrever  uma outra versão da  “divina comédia”, revista e actualizada.
         Misericórdia! Não brinquem nem nos tomem por tolos. Terá sido por “misericórdia” que a Diocese deu aval ao Governo Regional para mandar 70 (setenta) polícias atacar e esvaziar a igreja da Ribeira Seca, em 1985?... Foi por “misericórdia” que cortou a essa igreja a venda das hóstias para a Eucaristia?... Foi também por Santa “misericórdia” que não deixou entrar nessa igreja, em 8 de Maio de 2010, a Imagem Peregrina?... E será por que carga “misericordiosa” os bispos da Madeira, há 42 anos,  não têm força para  administrar o sacramento do Crisma na igreja da Ribeira Seca?..
         Misericórdia, Papa Francisco – dizemos nós. Quem tem ouvidos de ouvir,  entenda. Quem tem olhos de ver, interprete os factos.
         O que nos dá força é que há mais Vida além da Diocese. O que nos vale é que há mais Cristo além da Mitra.   
          
         29.Mar.16
         Martins Júnior

         

domingo, 27 de março de 2016

A FORÇA QUOTIDIANA DE UM PREFIXO: ---------- Reagir…Reflorescer…Ressuscitar!


Peguei-me hoje com o cardápio dos prefixos. São eles (mais os seus gémeos irmãos, os sufixos) que fertilizam a língua, criando infindáveis gerações de signos,  quando enxertados na palavra-mãe. De entre tantos e tão diversos, fixei-me naquele que este domingo particularmente sugere: o prefixo “Re”.
Compulsando o dicionário ou mesmo citando de cor e a esmo, o prefixo “Re” salta-nos diante dos olhos e, sobretudo, no terreiro das emoções, como o clic mágico que nos desperta e faz abrir manhã no meio da noite escura. Quem não se sentirá movido ao som do timbre de uma  renovação, de um repuxo de água viva, de um resplendor ou de um regresso à juventude existencial? Em subtítulo, dei acima uma trilogia representativa da energia que percorre a dinâmica do nosso ser: Reagir, Reflorescer,  Ressuscitar! Todos estes prefixos mexem connosco, impelem-nos a subir a encosta e a sair da “fossa” depressiva em que um dia cairmos.  
Este retomar do alento que revigora ideias,  músculos e nervos fica todo reintegrado intensamente no vocábulo que dá nome a este domingo: RESsurreição, o mesmo que ressurgir, renascer, reflorir. É um prazer e, ao mesmo tempo, um árduo “fazer”,  um programa de toda a hora, o “pão nosso de cada dia”.  Ninguém pode fazê-lo por nós. Somos nós que fabricamos (ou destruímos) o prefixo que  pode iluminar  muitas vidas: a nossa e a dos outros. Esse prefixo, filão invisível, tem a sua  nascente  (quantas vezes!) na pedra dura do nosso pensar e do nosso sentir, abrindo caminho para aquele Dia Novo que está connosco e, paradoxalmente, tanto tarda.
É a esta luz que vejo o Domingo de Páscoa. Reafirmando a vitória do nosso Cristo, importa ponderar que de nada adiantaria a ressurreição de um cadáver se não fosse maior a ressurreição da sua Ideia. “Serás jovem quanto a tua Ideia”. Não fosse a chama incandescente do pensamento libertador do Crucificado  e  Ele ficaria apenas como estátua de carne física arrumada na prateleira das antiguidades. “A carne mata, o Espírito é que dá vida” -  já o tinha proclamado anos antes. É por isso que a Palavra de Ordem e o apelo à Vida estão consignados no retábulo natural do templo da Ribeira Seca:
“QUEM TIRA JESUS DA CRUZ?...
QUEM O RESSUSCITA?... HOJE!”
 Propositadamente, às duas interrogativas, segue-se o reforço da exclamativa: HOJE! É aqui e agora que, com a Ideia, ressuscitamo-nos globalmente,  Corpo e Espírito. Deste filão inesgotável sai a força quotidiana do prefixo:  Reagir, Reflorescer, Ressuscitar! Em cada gesto, em cada reabrir das nossas pálpebras pousadas no horizonte longe-e-perto que nos chama! Tal como o som e o a alegria pascal das crianças que animaram o nosso Domingo Ressuscitado.
Na ementa deste domingo, ofereço um voto e um abraço: Comam e saboreiem o Prefixo deste Dia!  

27.Mar.16
Martins Júnior



sexta-feira, 25 de março de 2016

Na celebração do crime … ENTRO, MAS SOB PROTESTO!

 

Esta é a crónica que nunca desejara escrever. Porque este é o crime que nunca imaginara “ver” sob os meus olhos nem muito menos no cenário da minha memória.
         À hora em que escrevo, sinto os passos daquela multidão que corria para as suas casas batendo no peito. Oiço o pulsar e a voz do oficial centurião romano, comandante da tropa que levou a cabo a operação “assassinato” do Nazareno: “Agora reconheço que esse homem era um justo” (Lc. 23, 47)- eco magoado, mas tardio,  do plenipotenciário Pôncio Pilatos que, antes de  lavrar a sentença capital contra J:Cristo, exclamou perante os acusadores em satânico delírio: “Não acho matéria de crime neste homem” (Jo. 18,38).
         E, no entanto, entregou-O  à sevícia dos carrascos. Então, como? Se o juiz Pilatos não encontrou matéria de acusação,  por que  O  mandou para fatal cadafalso?
É com este nó atravessado na garganta que me custa entrar no cortejo da chamada “Via-Sacra”. Entro, sim, mas sob protesto! Contra a tibieza de Pilatos que se acobardou à pressão do poder religioso. Protesto contra os Sumos Sacerdotes do Templo, instalados no  topo da hierarquia da religião judaica. Estes, os autores  principais, únicos, deste horrendo atentado: sob as vestes bafientas mas tenebrosas da “Lei” esconderam-se na sombra e mandaram para a arena das ruas de Jerusalém  os soldados, os marginais, os criminosos das cadeias que bradavam liberdade para  Barrabás. Protesto contra a subversão das normas processuais então em vigor, atirando J:Cristo de tribunal em tribunal, o religioso (Sinédrio) e o judiciário (Pretório). Foi a antecipação da Inquisição, sempre o poder religioso e o poder político maquiavelicamente  conluiados, não se sabendo onde acaba um e começa o outro, para queimarem na fogueira pública da mais vil hipocrisia aqueles que rompem a treva e levantam o facho purificador da Verdade e da Transparência.
         É um turbilhão de íntimos sobressaltos que tomam conta de mim nesta fatídica sexta-feira do crime histórico. Protesto contra todos esses poderes hierárquicos, a dois níveis, que fazem da Via-Sacra uma “diversão” para os olhos e um anestesiante da consciência crítica,  pomposamente  arregimentadas (nada de mais disforme da verdade dos factos!) percorrendo cidades e aldeias, fazendo crer que o nosso Cristo se deixou matar, como se de um suicida se tratasse, “pelos pecados do Povo”, quando é o Povo a vítima  constantemente sangrada e apetecida dos poderosos. Protesto!  Jesus foi assassinado pelos crimes dos  que  pervertem o Povo, distorcendo a realidade: os detentores do capital, da ditadura, do domínio, seja ele profano ou pseudo e atrevido domínio “sagrado”.
Faço minhas as palavras de Anselm Grun: “Para Luther King, a Paixão de Jesus indicava um caminho para os cristãos manifestantes  se revoltarem pacificamente contra a injusta  segregação racial e para destituir o poder estatal, frequentemente bruto e desumano”.
Perdoem-me a impaciência, mas não consigo prosseguir.
Na nossa Via-Sacra, acompanhou-nos uma cruz. Sem crucificado. Não se percebe a atracção dos crentes por um Cristo, quase nu, derrotado e vaiado, como se os denodados defensores da Verdade tivessem sempre como prémio a derrota e a ignomínia. Acabemos com o prazer mórbido de ver condenados os inocentes. O nosso J:Cristo quer quem O tire de lá, quem faça ressuscitar as causas pelas quais teve de suportar toda a vida os ataques dos barões da religião.
Naquele cruzeiro vazio estamos nós, estão  todos os que lutam contra as quotidianas condenações de tantos Cristos vivos.
 Para apaziguar  a minha mais profunda indignação, fui visitar amigos meus, presos a uma outra cruz, uma cama do hospital. Aí, recordei-me do “Príncipe da Língua Portuguesa”, o Padre António Vieira, em São Luis do Maranhão, há mais de 400 anos:
  “As imagens de Jesus Crucificado que estão nas igrejas são imagens falsas, porque não padecem nem sofrem. Imagens verdadeiras de Jesus são os pobres, os doentes, esses sim é que padecem”.
Que o protesto se transforme em força maior e manhã de Páscoa!

25.Mar.16

Martins Júnior

quarta-feira, 23 de março de 2016

"FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM" ......................O QUE É “ISTO” ?


É esta uma noite ímpar, pela soma de contrastes que a vestem. Por um lado, os galopantes ventos cruzados que derrubam árvores e travam  aeronaves. Por outro, a lua cheia, viajando fagueira “como a alma de um justo”,  entra-nos em casa e na mente em acenos de paz e cânticos de Páscoa. Dormem no mesmo berço  nocturno, as bombas suicido-assassinas dos aeroportos  e  os prenúncios de uma Ceia, em cuja mesa  pão e vinho se misturam com o sabor do abraço e do perdão.
         E é nesta Ceia, chamada a Última, que debruço hoje o meu olhar para descobrir-lhe a ementa e desvendar-lhe o significado. Espero não ferir susceptibilidades e arquétipos interpretativos que sucessivas gerações nos transmitiram ao ritmo imponderado do tradicionalismo religioso.
         No derradeiro adeus aos amigos mais próximos, J.Cristo pôs a mesa e sobre a toalha dispôs pão e vinho da terra, dizendo: “Isto é o Meu Corpo, Isto é o Meu Sangue”. E como quem acentua o núcleo ideológico daquela estranha despedida, mandatou-os com este aviso: “Fazei Isto em memória de Mim”.  
         Que sentido maior terá o demonstrativo “Isto” no contexto da narrativa?
O conhecido e abalizado teólogo Bento Domingues refere, na sua  crónica de domingo passado, que a Última Ceia fica toda iluminada com o gesto simultâneo de J.Cristo quando decidiu lavar os pés aos comensais, pescadores e pecadores, seus amigos desde a primeira hora – uma atitude de intensa carga afectiva e de partilha igualitária entre todos, sublinhando a moralidade global daquela Ceia: “Também é Isto que deveis fazer uns aos outros”.  (Mt.26,26; Jo.13,1-17).  
         Os primeiros cristãos traduziram à evidência o mandato do Mestre: “Partiam o pão em  casa e comiam juntos com alegria e singeleza de coração…Tinham tudo em comum: até vendiam as suas propriedades e fazendas e repartiam com todos, conforme as necessidades de cada um”. (Act.2, 44-46).  Eis a genuína interpretação da Ceia do Senhor e do subsequente  Lava-pés, fielmente vivenciada pelos que receberam em primeira mão a narrativa do Cenáculo. Para eles, interessavam menos os rituais do que as acções concretas de solidariedade no terreno, demonstração dinâmica da sua fé na Eucaristia – a “Boa Graça”, etimologicamente.
         Assim não entenderam os séculos posteriores e os cristãos, doutrinados e dominados por uma hierarquia crescente em poder, luxo e majestade.  Passou-se a privilegiar o rito em prejuízo da seiva interior que lhe dava sentido e actualização. Fechou-se a Ceia no círculo apertado do formalismo litúrgico da “Consagração”. Depois, ergueram-se camarins e baldaquinos, cinzelaram-se sacrários, âmbulas e custódias, algumas delas de ouro precioso (lembremo-nos da sumptuosa custódia do ourives quinhentista  Mestre Gil Vicente) e guardou-se o “Senhor do Universo” numa perfeitinha hóstia circular, bem segura numa prisão que, por ser dourada, não deixa de ser prisão. E chegou-se a esta obtusa contradição: enquanto o Mestre e os primeiros cristãos tomavam o pão da Eucaristia para  abrirem caminho ao exterior, aos que viviam nas periferias, a Igreja usa prioritariamente a Ceia do Senhor para prendê-lO nas áureas teias do solenes rituais.
         Não está em causa o fenómeno da “transubstanciação” (um vocábulo dogmático que os crentes pouco entendem) mas a inversão dos factores-valores da equação entre os meios e os fins, entre o ritualismo e vida. Se alguém houve que repudiou o verniz dos cerimoniais e defendeu acerrimamente os valores da fé viva e actuante, esse alguém foi o nosso Líder e Mestre, atraindo, por isso, contra si a fúria dos sumos-sacerdotes sentinelas da religiosidade formalista oficial.
              Em síntese, todo o equívoco resume-se à frágil distinção entre significante e significado. Quanto menos evoluído é um povo, mais necessidade tem de significantes - repetidos, redundantes, asfixiantes até. Pelo contrário, um povo de olhos límpidos, não afectados por sombrias cataratas ideológicas, depressa intui o significado essencial dos gestos e tradu-lo em expressões factuais, prova transparente da sua crença.
         Quinta-feira Sã e Santa, porque criadora de solidariedades necessárias, dos perdões consensuais, embora tantas vezes doridos e sofridos, mas no fim sempre geradores de prazer e militância face ao futuro!
Não há Eucaristia sem Abraço!
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Seria “divertido” e produtivo se alguém quisesse desenvolver um tema que tivesse mais ou menos este título: “Ao fim de 50 anos de embargo a Cuba, o presidente adventista Obama visitou aquele Povo. Na Madeira, faltam só oito anos para a Diocese levantar o embargo decretado desde 1974  à comunidade cristã e católica, chamada Ribeira Seca”.
Viva Quinta Feira Sã, Saudável, Santa!
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23.Mar.16

Martins Júnior

segunda-feira, 21 de março de 2016

1 – 5 – 100: CHUVA DE PRIMAVERAS!


Abracei a árvore da Primavera. E logo dos seus ramos seculares caíram cem estrelas, uma a uma luzindo nos meus braços.
Poderia começar assim o poema que ontem, domingo, na transição do equinócio solar, aconteceu no seio desta comunidade da Ribeira Seca. Diante dos nossos olhos – e foram muitos, muitos – desfilou o mistério da Vida: desde o cordão umbilical preso à terra-mãe até aos nimbos que se evolam na longínqua estratosfera. Vimos todos passar a Primavera viajante ao longo das cem estações do Tempo. E que beleza, com sabor a nostalgia e renascença, que profundidade no olhar de quantos contemplaram a latitude e a longitude plenas da existência humana!
Não me apetecia descer deste voo espacial que nos proporcionou aquela hora de encantamento. Mas é preciso  decifrar e transmitir o simbolismo deste dia estruturalmente ímpar, para multiplicar o êxtase e a poesia entre todos os que se juntam ao redor desta mesa em que, dia-sim-dia-não, nos encontramos.  
Estou descrevendo a emoção que me envolveu no templo da Ribeira Seca durante a comemoração de três efemérides entrelaçadas num só tronco  -  a Primavera da Vida:
Foi a celebração do centenário da nossa vizinha e paroquiana Dona Guilhermina de Olim. Depois, o baptismo do Marcy, de cinco anos de idade. Trinta minutos após, novo baptismo, a Mariana, de um ano apenas.

Quem seria capaz de ver este “filme” gradativo  sem sentir-se transportado mais alto e mais além?! Ter ali, na nossa mão e no nosso olhar, os pontos cardeais da condição humana!... Adivinhar e tocar a eloquência daquelas rugas que, há cem anos, exalavam a candura matinal de uma vida em botão ! ... E, à mesma luz, prognosticar os passos futuros de quem agora vê diante de si as pegadas que outros já pisaram na vida!... Até quando? Cinquenta?... noventa?... até aos cem e talvez mais?... Misterioso o GPS de cada existência, mas tão igual nos seus princípios e fins! Aqui apetece evocar Fernando Pessoa: “Para escrever a minha biografia bastam duas datas, a do meu nascimento e a do meu fim, tudo o resto é meu”. De quem fez cem anos, já sabemos o que foi “seu”. E qual será o  de quem balbucia as primeiras boas-vindas de um incógnito amanhã,  aberto  à sua frente?
Exaltante e enternecedor abraçar os polos dos dois hemisférios existenciais! Concluir que, afinal, somos todos atletas olímpicos  correndo num mesmo estádio, em que os que vão entregam aos que vêm o facho luminoso da História. Afinal, “nenhum de nós é uma ilha”, repetindo Thomas Merton. Pelo contrário, somos todos UM SÓ, no incomensurável cortejo do Tempo, umas vezes subterrâneo amargo, outras vezes solarengo e triunfal  “como em Dia de Domingo”!
E foi no Domingo das Palmas esta ditosa chuva de Primaveras. Domingo evocativo da entrada em Jerusalém, onde a força de um Povo Unido suplantou os carros de guerra, as coortes  romanas e os arsenais de ouro e prata com que os poderosos maquinavam assassinar o Profeta da Libertação e da Vida.
Celebrar no mesmo abraço um ano, cinco anos, cem  anos,  é também erguer a vitória de um Povo, fruto da sua vitalidade primaveril, sempre antiga e sempre nova!
Parabéns à Vida!

21.Mar.16

Martins Júnior

sábado, 19 de março de 2016

PAIS – PATENTES – PATERNIDADES


               Não há Dia do Homem, mas há-o da Mulher. Porque o Homem é o tal, o maior, o auto-suficiente. A Mulher é a qual, serva, subalterna e carente. Esta a mentalidade que se enroscou na raiz e no tronco das sociedades, mesmo as ditas civilizadas. Talvez por isso, hoje, invertem-se os termos: o Dia do Pai subalterniza-se face  ao seguro e alçado Dia da Mãe. Apertado e esmorecido é o Dia do Pai.
         Mas não deveria ser assim. Porque a paternidade não se confina aos convencionais limites da procriação biológica. Vai muito mais além e abarca o início e o fim do processo criativo de toda a produção humana ou de toda a transformação da natura.. Inscrevo, pois, à cabeça desta incursão o dado adquirido de que se todos os dias são-no da Mãe, pela mesma razão, todos são Dia do Pai. Seja maior ou menor, homem ou mulher, seja planta, flor, animal ou mineral, a paternidade cria patente, descoberta, semeadura.
          É nesta grande angular, de amplitude cósmica, que vejo  o magno estatuto da paternidade. Há que pedir contas ou, pela positiva, tecer palmas e hossanas nas aras onde se cultua a patente paterna. Aos  helénicos  Pais da Filosofia, Platão e Aristóteles; ao Pai do sobre-dotado Povo Hebreu, Abraão; ao Pai da Europa, S. Bento: ao Pai da Nação Portuguesa, Afonso Henriques: ao Pai do Teatro em Portugal, Gil Vicente; ao Pai precursor da navegação aérea, Bartolomeu de Gusmão; Ao Pai da Relatividade, Albert Einstein;  ao Pai do Serviço Nacional de Saúde, António Arnaud. E num mesmo feixe, a todos os Homens e Mulheres da Ciência, da Pedagogia, da Música, do Cinema, arautos de um ,mundo novo, vai hoje todo o aplauso do Universo:
         Mas àqueles que “semearam sombras e quebrantos”, desde o genocídio mais primitivo até à malvadez do nazismo, das ditaduras, do jihadismo, a esses há que pedir contas severas, bem como aos satânicos mensageiros do obscurantismo religioso. Pais cegos que fazem filhos cegos, monstros que procriam outros monstros, pais assassinos que só trazem filhos no ventre para matá-los à nascença.. Quem os leva à barra do Tribunal da Humanidade?... Quem os amarra às grades dos fornos crematórios para contemplarem os antros da crueldade onde destruíram vidas inocentes? … Quem os pendura nos muros da vergonha ou nas muralhas de arame farpado para verem onde morrem, exangues, as vítimas das guerras, das fomes que eles próprios armadilharam com as mãos peçonhentas?...
         Eu sei e peso a violência dos anátemas que acabo de escrever. Mas infinitamente mais violentos foram e continuam a ser os traumas, as crateras, os abismos de horrores que sadicamente abriram no coração da História e nos corações das gentes. Para que, ao menos, os filhos e herdeiros arrepiem caminho e reparem com equidade os danos que tais pais infligiram.
         Dia, hoje, em que é posta no livro das horas e no filme dos dias a nossa patente criadora, a nossa paternidade interventiva. Cada palavra, cada gesto, cada linha que se escreve, tudo o que é fruto do nosso respiro  assume-se como um filho saído do mais íntimo que temos e somos. Sejas mulher ou homem, sejas jovem ou ancião, estás colocando no calendário da História a marca do Dia do Criador, o Dia do Pai. Tal como o fizeram Pierre e Marie Curie, os Pais do novo elemento rádio, ganhando o Prémio Nobel da Física, em 1903, pela excepcional descoberta  que abriu caminho para promissoras e decisivas conquistas da ciência em prol da humanidade.

19.Mar.16
Martins Júnior
   


quinta-feira, 17 de março de 2016

O HERÓI “SERVE-SE” VIVO! - Um mês, muitos anos sem ele

Eu sei que todos os dias são livros abertos na tumba de quem nos diz adeus. E muitos têm sido neste início de ano bissexto. Cada um com a marca distintiva da sua proximidade da nossa casa, do nosso ofício, do nosso peito. E quanto mais o tempo passa mais se aviva a necessidade de trazê-los connosco. Não para entronizá-los, mas para fortalecer-nos.
Por este necessário apelo interior, não posso deixar de chamar ao meu/nosso convívio aquele SENHOR que atravessou quase anónimo as veredas e atalhos desta ilha  -  o Padre Eduardo Freitas do Nascimento. Faz amanhã um mês que deixou  numa tumba humilde de Santana o livro aberto de uma vida. Das suas múltiplas funções e não menos extensos serviços, já escreveu na imprensa diária José d’Olim, numa linguagem de fino recorte literário e humanista. Por isso, da minha parte, limitar-me-ei a saborear o companheirismo de um colega e amigo que, na década de 60 do século passado, criou as novas centralidades de Piquinho, Preces, Ribeira Grande e Maroços,  no Machico mais  profundo, corporizando a sábia intuição do Prelado David de Sousa de descentralizar o monopólio das igrejas urbanas e conferir a autêntica autonomia aos habitantes da ruralidade, até então abandonados nas periferias montanhosas da ilha, sem estatuto de cidadania e, pior, desprovidos dos bens indispensáveis à dignificação da condição humana.
         Neste âmbito, guardo de fresco na memória visual o vigor denodado do Padre Nascimento em abrir caminhos onde as pessoas viviam no mais cru isolamento, captar água pura das nascentes para acabar com as viroses que não poucas vezes minavam os rurais que se abasteciam da água das levadas. Ele, entre Preces e Maroços, e o seu colega conterrâneo, Padre Manuel de Freitas Luís Júnior, na Ribeira Seca. Nessa altura, o padre era pastor, pedreiro, servente, mestre de obras, engenheiro, assistente social, curador de corpos e almas. Tempos duros!  Lembro-me da sua coragem em alcançar outros continentes, estendendo a mão aos emigrantes madeirenses lá residentes para poder construir as igrejas de Piquinho e Ribeira Grande. Falo dessa luta (hoje ninguém a conhece) porque também me toca de perto. Corria então o ano de 1962 e o Padre Nascimento pediu-me que eu, recém-ordenado sacerdote, o substituísse nas tarefas paroquiais e de que guardo sentidas recompensas de afecto e camaradagem para o resto da  vida.
Percorreu as “sete partidas” da Madeira em várias paróquias e, num certo dia, vi-o confidenciar-me a pouca consideração pela sua já debilitada situação etária com que a hierarquia eclesiástica lhe impunha serviços e deslocações  que a saúde  não lho permitia.
“O herói serve-se morto”  -  rigorosa expressão do grande poeta Reinaldo Ferreira, o mesmo da balada do “soldadinho que volta numa caixa de pinho”,  referência aos soldados mortos na crudelíssima guerra colonial.
Também o Padre Nascimento foi herói “servido morto” à mesa da hierarquia eclesiástica que o sugou até ao tutano e depois abandonou-o num canto anónimo, como ele, da Terceira Idade. Partiu-se-me o coração quando fui visitá-lo e deparei-me com um corpo frágil amarrado a uma cadeira no meio de tanta gente decrépita, deprimida. O trato na casa era exemplar em higiene, alimentação e cuidados. Mas aquele crucificado de olhar longínquo naquele, para mim, degradante figurino (embora por precaução médica) bateu-se-me como pedrada no peito, imagem que jamais apagarei da minha retina.
A memória torna-se repulsa, indignação, ao constatar aquilo que já vem de longe: a Igreja na Madeira trata,  como senhoria,  os seus padres enquanto eles têm para dar. Depois porta-se como madrasta desnaturada. E pensar que determinada habitação, no Funchal, foi legada por alguém, precisamente, para servir de última residência aos sacerdotes anciãos da diocese – e saber que o bispo “emérito” fez dela a sua exclusiva mansão – então a indignação atinge o cúmulo da revolta!
 Merece uma aprofundada e exigente reflexão a constatação deste caso.
Mas não quero desviar-me  deste que considero um dever e um conforto pessoal: trazer para a minha/nossa companhia um herói. Vivo! Imperativo! Ele não precisa, como nunca precisou nem  procurou os louros dos palcos transitórios. Nós é que precisamos  vê-lo e segui-lo na sua luta porfiada e consequente. Para ele, o amigo de peito, poderia inscrever-se na sua lápide a filosofia do eloquente provérbio árabe: A primeira recompensa do dever cumprido é ter cumprido esse dever”.

17.Mar.16
Martins Júnior


terça-feira, 15 de março de 2016

FOTOSSÍNTESE DA VIAGEM FINAL

Poucas horas faltarão para crer o incrível. Sei do quanto conversávamos sobre a morte. Acompanhá-lo-emos,  desde o necrotério - “já lá vão quatro dias(Jo, 11,17) – até ao átrio do  optado holocausto da cremação, enquanto vou soletrando esta fraterna homenagem para o Ângelo e, se possível, perene bálsamo para a Ana.


                                                                                   
Mais doze pancadas
No mostrador daquela porta
A que chamam câmara morta
E sairão mudas geladas
Canções poemas gargalhadas
Da véspera
Das vésperas  de outrora

Agora
Outra porta te reclama
Onde o gelo se faz chama

E sairão
Aladas crepitantes
Cinzas que dão
Fumo branco
Volutas diamantes
A quem fica nesta margem

Estranha fotossíntese da última viagem:
Contigo vão o moinho a lenha e as ossadas
Connosco deixas
O canto livre das estradas
O voo astral da tua Ideia
A manhã clara das tuas gargalhadas

Que a nossa mão semeará
Até que chegue aquela badalada
De levarmos no saco da bagagem 
As cinzas que nos vestem

De novo o mesmo fumo branco sairá
Na derradeira torre de menagem
Hoje tua – amanhã nossa

Oh portentosa
Estranha fotossíntese da última viagem  

15.Mar.16

Martins Júnior

domingo, 13 de março de 2016

DOMINGO CLARO-ESCURO EM MÊS DE PRIMAVERA - (fragmentos de um diário)



        Domingo, 13, Faltam oito dias para ouvir-se no calendário sonoro das horas o repique a primavera. Está chegando a manhã clara.
Mas antes, atravesso o túnel sombrio que leva à cama do hospital. Fui vê-la, aquela mulher que, mesmo doente, era a saúde e a luz do homem que a amava. Quanto ele a amava! Todos os dias subia à montanha para  alentar os pés doridos da resignada sofredora. E todas as noites esperava-a em casa, entre quatro paredes onde faltava o  sol e sobrava a esperança de vê-la a seu lado.
Breve foi a visita. Mais breves foram as palavras. Da sua boca, o desabafo apertado: ”Ainda não creio  que seja verdade… Como é que eu hei-de entrar naquela casa?”...
A verdade é que o seu homem já não estava naquela casa. Tinham-no levado, cadáver, para a morgue. O coração em vigília que sempre a esperava nas nocturnas paredes  do quarto desértico, afinal dera imprevistamente o sinal derradeiro. Acabara-se o tempo de espera.
E o domingo 13, claro prenúncio da primavera à porta, tornou-se escuro, como a noite da véspera que levou o companheiro da alegria e  da coragem… O escuro fez-se então negritude de um universal inverno ao ver, à luz de  relâmpago fugaz, que naquela cama de hospital estavam milhares e milhões de enxergas com gente dentro, esmagada pelo desgosto de não ter mais à sua espera  quem  sempre a esperara.
…............................................

No texto bíblico de domingo 13, uma estrela cadente descia diante dos meus olhos:
O Senhor abriu estradas através do mar
Veredas por entre as torrentes bravias…
Eis o que diz o Senhor:
Farei brotar água  no deserto
Rios na terra árida
Para matar a sede ao Meu Povo  ( Isaías, 43, 16-21)
Só penso numa coisa.
Olhar e lançar-me em frente
Continuar a correr até alcançar a meta (Paulo aos Filip, 3, 8-15)
………................................

Foi então que a estrela cadente transfigurou-se em voo ascendente.
Olhei-a de novo, a face da mulher, como que sintonizada com o pensamento íntimo que me penetrara até aos ossos. Era ela a efígie serena de uma heroína vencedora no términus da batalha. Interiorizei bem fundo de mim a resposta afirmativa que imaginei ler-lhe nos olhos nimbados de um estranho brilho: “ O adeus final de quem amamos será o chão fértil  para alcançar a meta que sonhamos?”
E o Domingo 13,  de claro-escuro passou ao alto esplendor de um Dia Novo!

13.Mar.16
Martins Júnior

sexta-feira, 11 de março de 2016

CARTA FORA DO BARALHO? OU TALVEZ NÃO!



Sei que hoje, sexta-feira, arrisco-me a ser carta fora do baralho. Deste baralho bailado do quotidiano. Hoje,  não me detenho em nenhum trunfo,  nenhum  “tiro”  jornalístico por mais vistosos que se apresentem. É verdade que alguém tem de publicitar, outrem terá de comentar, os leitores/espectadores precisam de quem lhes dê sinais de trânsito na encruzilhada dos acontecimentos para saber interpretá-los e direccioná-los.
Mas hoje, não. Deixo a casuística de lado, volto as costas ao foguetório das notícias fugazes e entro na galáxia dos tempos. E sinto-me outro, siderado, espraiado num mundo outro, o qual, sendo nosso, chega a  parecer estranho. É o que acontece a quem viaja: não tem lugar onde colocar o televisor, não tem tempo para assentar o olhar na almofada do papel escrito. É um andar sem parar, a não ser quando se espera pela saída do avião ou o atraso do comboio. E é aí que outros ares podem refrescar o nosso entendimento, repousar a vista e a mente. E é aí, também, que vêm à tona do quotidiano os estados de alma.
         Peço e agradeço  a paciência de partilhar comigo o estado de alma de quem, aguardando o toque horário, entrou numa dessas bibliotecas de circunstância a que chamam feira de livros, informal e aberta todo o ano, ali mesmo, à mão-de-semear. Primeiro, timidamente, quase que assustado perante a vastidão do recinto e depois, seduzido como um adolescente pelo rosto aliciante de cada título, o seguinte mais persuasivo que o anterior. Entra-se na galáxia de novos sóis e novos séculos. Apercebemo-nos de miríades de estrelas, gente que povoa a amplidão do universo a que pertencemos, de quem nunca nos foi apresentado mas está ali convidando-nos a entrar em sua casa, no seu pensamento, no seu coração. Uns são poetas de antiquíssimas civilizações, outros dramaturgos, outros cientistas e recriadores da vida. A ansiedade cresce - uma ansiedade positiva que tem um misto de êxtase e nostalgia por não termos hipótese de aceitar-lhes o convite, de nos sentarmos à sua mesa e beber, beber até à exaustão os rios da inspiração, a história de outras vidas que, mesmo distantes, se cruzam com as nossas. Ali se sente na pele a lógica do velho aforismo, retomado por Goethe, no seu “Fausto”: Ars longa, vita brevis – “a tarefa é imensa, mas a vida é tão breve”. Só de imaginar que os anos passam e nunca teremos oportunidade de entrar em contacto com os que outrora, ontem e hoje, nos escreveram  e ainda permanecem, aperta-nos um travo de culpa e de mágoa por não termos tido o bom apetite ou o tempo disponível para saborearmos o maná garantido que nos foi legado, ali na palma da nossa mão. Vamo-nos perdendo pelas esquinas do quotidiano, baralhados entre notícias frouxas, ocasionalmente fascinantes dos casos do dia, mas que rapidamente se esfumam na vertigem das horas. Seria preciso um nutricionista do espírito para nos ensinar a preferir os produtos psico-biológicos que alimentam a personalidade e nos fazem descodificar a sinalética das  encruzilhadas da vida.     
         Apetece ficar todo o tempo neste imenso rectângulo, até perder o comboio. Apetece trazer num braçado festivo a herança viva dos companheiros de estrada que nos precederam e assimilar as mensagens que ao nosso telemóvel projectam os viajantes da nossa era.
É certo que não nos podemos alhear do que se passa à nossa volta. Certo é, também,  pesquisar  noticiaristas, opinadores, intérpretes do actual momento histórico.  Incontornável a consulta de e-books, ipads, net e afins. Mas é deplorável a opção do descartável que domina a cultura,  até nos programas escolares que menosprezam os mestres da nossa “Pátria – a Língua Portuguesa”. Em contrapartida, quanto nos conforta e mobiliza ver jovens (e não são tão poucos) frequentadores estudiosos, aprofundando o conhecimento nas salas de biblioteca!
         Não era minha intenção moralizar, mas tão-só alargar um “estado-de-alma”  que voltou a dominar-me na feira corrente da estação ferroviária. Para ser coerente comigo mesmo, seria preferível propor a leitura de um livro essencial, em vez da folha volante destes “dias ímpares”… Fique, ao menos, a mensagem estruturante aqui entregue.

11.Mar.16
Martins Júnior

quarta-feira, 9 de março de 2016

NO DIA DE PRESIDENTES: PRESÍDIOS E PRECEDENTES


Passeasse hoje o monóculo do nosso Eça pela baixa da capital e, de novo, sentenciaria: Afinal continuamos como no século XIX, “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”. Nunca foi tão adejada e badalada a estreia de um Presidente da República, a sua entrada triunfal e triunfalista - com manga franciscana de poupadinha e sem jantares de gala, anunciava o anfitrião - mas  quem contasse as viagens e ajudas de custo que as centenas de convidados especiais custaram aos erários públicos de origem, a vulgarização do evento (extensão ao vulgo) e sua proletarização (concertos grátis à plebe na Praça do Município) ver-se-ia que a factura do arraial não foi assim tão modesta. Será talvez a nova imagem de marca: substituir os salões palacianos pela calçadinha das ruas e praças públicas. Em 10 de Junho, já está na agenda, Portugal será Paris e o resto paisagem.
         Presidência nova, sem dúvida, mas sempre Presidência. Não será rábula o que proponho fazer, mas anda por aí perto: desfibrar o tecido de sempre, chamado Presidente e Presidência. Tem algum interesse e não menos piada.
         Presidente (do latim praesidere=estar sentado à frente) significará aquele que agarrou a poltrona do poder e ali fica, extático, majestático, como o Filho que não se cansa “de estar sempre sentado à direita de Deus-Pai” ou como o conselheiro Acácio que lhe basta estender o braço lento para provar o seu presidencialismo autoritário. Temo-los por tudo quanto é  canto. Curtidos, anafados, guturais e ocos como latas vazias que crescem na mesma proporção do vácuo do seu cérebro. Então se têm dons clericais ou afins, mais alargados e pesados se tornam com a mitra de presidentes canónicos. Todos por junto, são os que nascem deitados para presidir sentados.
         Mas outros há que se cansam do sofá e põem-se num alvoroço de parafuso eléctrico, saltando, gesticulando, perorando, ora na aldeia, ora na capital, ora no estrangeiro, não há quem os pare, pulam num ápice da inauguração da bomba de gasóleo para os urinóis do balneário do clube e, daí, em arroubos de exaltação febril, correm ao concerto para criancinhas desfavorecidas. “Barco parado não ganha frete”, isto é, não ganha votos, comenta-lhes o povo nas traseiras presidenciais. Estes são iguais aos primeiros: presidentes automáticos que com o ruído escondem o vazio de ideias.
         Nascidos na mesma ninhada dos “eléctricos” surgem os que, elidindo o id, em vez de presidentes, tornam-se presentes. Em tudo. Ubíquos, pidescos, temerários nos juízos, nada deixam escapar ao cutelo do poder. Como zombies artesanais ou drones de fábrica, seduzem, controlam, ameaçam. E matam. Ou seja, vingam-se, saneiam quem lhes atravessa no atalho.
         Nem tudo, porém, lhes corre de vento em popa. Porque no mesmo signo etimológico de praesidens (presidente) está uma armadilha chamada praesidium (prisão). Não foi por acaso que o estreante inquilino de Belém teve necessidade de, na ultima lectio, dizer aos alunos de Direito: “A mágoa que levo é a perda da minha liberdade”. Com maior ou menor autenticidade, o facto é que o meio ecológico de um presidente é um presídio. Prisão, onde as grades são as responsabilidades, por onde entra o ar puro do interesse público, aquele  bem-estar  que lá fora espera  a população constituinte, autora do seu mandato. Por isso, todo o verdadeiro presidente deveria aspirar àquele horizonte de que falava Gilbert Cesbron: “A minha prisão é um reino”. Se assim não for, aguarda-o uma outra prisão, essa humilhante, como se tem visto nalguns casos bem conhecidos.

         Poderia encerrar esta digressão pela galeria de presidentes, aproximando a popular expressão precedente, a qual, parecendo uma corruptela de linguagem, acaba por encerrar um sério aviso a quem alcança o patamar superior da governação, seja local, regional ou nacional. Na sua raiz originária, preceder, ao mesmo tempo que indica prioridade, significa também ceder o lugar (cedere, do latim) afastar-se. Sem mais delongas, o aviso aos presidentes é aquele a que já me referi em  circunstâncias idênticas - a canção do “SG gigante” (Sérgio Godinho, como o cognominou o Prof. Arnaldo Saraiva): “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”. Da tua vida de presidente. Queira ou não queira, o senhor precedente terá, um dia, de dar o lugar a outro.
09.Mar.16
Martins Júnior

segunda-feira, 7 de março de 2016

AS MULHERES NA TRAGÉDIA MAIOR DE JERUSALÉM – ANO XXXIII


É da praxe, hoje e  amanhã, pintar de feminino as páginas e os portais de tudo quanto é editorial. Porque estamos na envolvência do  artificioso Dia da Mulher. Chamo “oficioso”, interpelando-me, a mim  e ao mundo,  se todos os dias e todas as horas não lhe pertencessem, a ela, princípio activo da Vida! Vou, pois, trazê-la para a nossa tertúlia afectiva desta passagem de nível de 7  para 8 de Março.
Mas não é só – nem tanto – por isso. É também pelo mesmo impulso de entrar, com olhos de ver, no Processo de Jesus,  continuando a exposição do dia  25 de Fevereiro. Tentarei perceber qual o papel da Mulher em toda essa tramitação. Não serei, certamente, coincidente com as interpretações mórbidas da devoção  à deprimida “via-sacra” com que a tradição  trata as pegadas do Caminho da Cruz. Porque o que me atrai é a análise objectiva dos factos , no seu concreto e rigoroso contexto histórico-social.  
Por esta pista, penso alcançar a visão exacta da Mulher: uma personalidade firme,  coerente, inquebrantável, a que o pulsar do coração imprime aquela razão de que “o amor é mais forte que a morte”.  Para aí chegar, situei-me numa das colinas da Jerusalém do ano XXXIII, olhei  a paisagem sócio-político-religiosa da época em que a ditadura do Templo ombreava, senão mesmo, suplantava a ditadura do Império. O nazareno “Filho do carpinteiro” mestre José, além de servente de oficina, um proletário portanto, era tido aos olhos dos dois poderes como um perigoso agitador público. Não tinha exército, não tinha púlpito,  não tinha banca. Nem o  traje o diferenciava da “arraia-miuda” do seu tempo. Por isso, tinha contra si a omnipresente vigilância do estado romano e do estado judaico, eram marcados os seus fãs e só não o liquidaram mais cedo porque o seu escudo estava na multidão crescente que dia-a-dia o acompanhava. Ao mínimo sinal de dispersão, caíam-lhe em cima. Ontem como hoje, os ditadores temem o Povo unido!
É aqui mesmo que entram as mulheres de Jerusalém. Quantas delas se não deixaram fascinar pelo olhar meigo e vigoroso do Nazareno, pela sua  palavra penetrante e aconchegada?!... No emocionante texto d’O Processo de Jesus, Diego Fabri revela um dos mais convincentes libelos  acusatórios, o que foi atirado por Caifás “Esse homem é um sedutor das multidões”. Mas na hora das trevas, desde aquela noite trágica em que  traiçoeiramente foi denunciado e entregue às garras do poder, todos os “amigos do peito”  dispersaram, um deles até, transido de medo,  jurou que não o conhecia. Quem ficou? Quem o acompanhou até ao patíbulo?...  As mulheres. Primeiro a Mãe, que deu com ele numa das empoeiradas ruas da velha cidade, abandonado aos jagunços contratados pelo poder. Os dois olhares, que dolorosamente se cruzaram, foram como dois rios que, em vez de correr para a foz do desânimo, ganharam força hercúlea para subir à nascente, às fontes do monte  Calvário.
Depois, veio a “Verónica”, designação que passou a identificar aquela mulher anónima que teve a suprema ousadia de romper o pelotão dos soldados e carrascos afim de limpar a face irreconhecível daquele que sempre o conheceu, de porte atraente e afável, compreensivo e bondoso para todos. Não consigo passar adiante sem demorar-me nesta sexta estação: aquela mulher, coração de gigante, não consentiu no que via,  furou a muralha de ferro bruto que esmagava o condenado e apresentou a arma que a todos deixou estarrecidos: uma toalha de linho puro a restituir-lhe o rosto de outrora. Eu faço ideia dos empurrões, dos insultos e palavrões de caserna, vociferados contra ela e o seu Mestre. Mas não hesitou. Vejo nela uma Joana d’Arc, uma Maria da Fonte, uma Catarina Eufémia! Mulheres de luta e de coragem!
Outras mulheres, nos quintais e nas portas entreabertas das suas casas, com medo das retaliações dos olheiros do poder, ou acompanhando na retaguarda o lúgubre cortejo, enxugavam furtivas lágrimas de compungida indignação. A essas o Mestre, em agradecimento,  ditou-lhes a palavra de ordem que até hoje nos é dirigida: “Não choreis por mim, mas pelos vossos filhos” (Lc.23,28), o mesmo que dissesse: “Por  mim e do que me fazem, ninguém pene, ninguém se indigne. Indignai-vos, antes, pelo que os poderosos vos fazem a vós e pior farão ao vosso Povo”. Mais que as choronas "devotas", o nosso J. Cristo, quere-as, as mulheres, intrépidas e lutadoras.  
Até ao último suspiro, como se fossem estátuas vivas da Dor, lá estavam elas, sempre as mulheres: “Sua Mãe, a irmã dela, Maria de Cléofas, e Maria Madalena” (Jo, 19, 25). Dos homens, dos Doze, nem sombra. Todos se acobardaram, excepto o mais  jovem, João, filho adoptivo de Maria. E, para recebê-lo nos braços, já morto, sempre uma mulher, a Mãe, líder inspiradora e silenciosa da luta do seu Filho!
Por isso, mereceram as mulheres erguer, como pioneiras bandeirantes, a grande mensagem da Vitória na manhã da Páscoa do Ano XXXIII.
Mulheres que vêem e entendem. Mulheres que lutam e libertam.
Mulheres de ontem!
Mulheres de hoje!
Mulheres de sempre!

07.Mar.16

Martins Júnior