sábado, 31 de dezembro de 2016

COM UM PÉ NO CAIS E OUTRO NO MAR ALTO – Ponteiros soltos na bússola de quem anda sempre em viagem


De entre todos, sempre o melhor é o Dia Seguinte.

De todos os Natais, o mais feliz é o que há-de vir.

De todos os anos, o mais longo e belo é o de amanhã.


Porque o Amanhã convida, chama, seduz, arrasta-nos.

O lucro está sempre na viagem. Não na largada nem na chegada.

Águas paradas não fazem argonautas e Dias fáceis não produzem troncos.

Eu nunca espero o Ano Novo. Sou eu que vou buscá-lo. E ganhá-lo.

Na quilha do meu barco  está escrita mais uma onda batida:

Não perguntes o que o Ano Novo pode fazer por ti.
Pergunta-te o que podes tu fazer pelo Ano Novo.

“NAVEGAR É PRECISO”!
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31.Dez.16 – 01.Jan.2017

Martins Júnior

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

UM PARTO ATRIBULADO


“A minha proposta é esta
Quero que  saia em decreto
Lá nas oitavas da Festa
O tiro será directo
Se alguém  disser que  não presta
Saia já do meu projecto:
O aeroporto tem fome
Tem fome de outro nome”


A velha Quinta Vigia
Nunca vira coisa assim
Nem uma mosca zumbia
Desde os tempos do Jardim
Qual é o nome e qual seria
Perguntaram ao Delfim
“Que ninguém me estrague o caldo
Há-de chamar-se Ronaldo”

Meias palmas em surdina
Surdiram na sala “oval”
Mas depois em cada esquina
Só se ouvia dizer mal
Dessa ideia peregrina
Do dono do roseiral
E em nova reunião
Começou a confusão


A gargantinha afinada
Dos Assuntos Sociais
Entrou logo de rajada
Contra os sisudos demais
“Eu quero mulher prendada
Nas tarjas inaugurais
AeroDolor´s  é bacana
E até vende  mais banana”

“Bananas ninguém lhas toque
São coisas do meu pelouro
Não percebo esse remoque
Às meninas do meu coro
Se aqui não há rei nem roque
Faço uma entrada de touro”
Falou grosso a envergadura
Do barão da agricultura

Que bota puxa por  bota
Provou-o  a que calça Prada
Avançou com toda a tropa
E de longe ferra e brada
Contra o patrão da bolota:
“Já sei que isso não te agrada
Mas vai chamar-se  ‘Dolores’
O chão dos aviadores”

Logo acorda da fumaça
O pai da grande mudança:
“Tirei da minha carcaça
Dar o nome da criança
Ronaldinho  tem mais graça
E todo o mundo descansa
Seu nome  de  pai já  tem
E não é filho de mãe”

Toda a gente se calou
Na mesa dos governantes
O  craque então viajou
Prá terra dos diamantes
E um Jumbo lá comprou
Dos mais caros faiscantes
Não queria  Abdula-Kek
Ver aqui um calhambeque

Mas o caso deu p’rao  torto
Ao chegar um funerário:
“Essa ideia é um aborto
Já lhe dou  receituário
‘Aeroporto  nado-morto’
Mando eu, sou secretário
Não pensem ficar impunes
Ou não me chame mais Nunes”

( Neste momento e devido à confusão gerada  entre os inquilinos da Quinta, a reunião foi interrompida. O cronista, poeta popular reformado, interrompe aqui o relato, para retomá-lo em próxima reunião).

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  29.Dez.16
Martins Júnior



terça-feira, 27 de dezembro de 2016

OS DEZ MAIS – OS CEM MAIS – OS MIL MAIS – OS INFINITAMENTE MAIS


         Vem nas revistas da especialidade e vem nos diários de bairro, pula das eólicas às parabólicas, passa nas redes sociais e nos ecrãs panorâmicos das TV’s.  É a praxe de fim-de-ano, com o volumoso cardápio das figuras de proa que mexeram com os 366 dias de 2016. Foram os donos da tinta e do papel publicado, “pivot’s” dos noticiários sensacionais, enfim, foram os cometas estrondosos que riscaram a abóbada planetária do ano bissexto.
         Pertencem aos segregados do Olimpo, umas vezes por mérito próprio, outras porque apanharam o comboio das oportunidades que lhes passou à ilharga da vida. Eles são os da alta finança, eles são os “Trump’s” emersos da bebedeira de um “povo de carneiros”, eles são os verdugos da bola – e todos, por junto,  são parto da fama que hoje se levanta e amanhã se esfuma. A história, sempre se disse, é a praia dos vencedores.
         Hoje, porém, esqueço as estrelas e baixo os olhos para o chão rasteiro por onde caminhamos todos os dias e saboreio o cheiro gostoso dos alecrineiros, das violetas, do musgo e do rosmaninho que alcatifam o terro do quotidiano sem nome, como vicejam entre as pedras do presépio.  Mergulho nos regatos órfãos de brilho mas prenhes da seiva fecundante que alimenta as raízes seculares e as leguminosas efémeras, sem as quais o cérebro asfixia  e o coração colapsa. Hoje esconjuro o espectáculo e o tsunami dos  brasonados da corte – de tão poucos, são tão fáceis de encontrar – e deleito-me com os protozoários quase invisíveis da vida, os artífices infinitamente pequenos mas portentosamente grandes porque são eles os portadores e sustentadores do equilíbrio dos elementos e das pessoas, os que acompanham pela mão o viajante do mundo que cada um de nós traz consigo.
         Não tenho nenhum “Nobel” à minha beira, mas vejo tanto sábio que me ensina a soletrar as pregas da vida. Olho o mestre-escola que, paciente e diligentemente, abre os olhos da criança para a enciclopédia dos saberes. Descubro o herói trabalhador que  todos os dias, faça bom ou mau tempo, pega a enxada e o martelo e segue avante para  desbravar a terra e construir o mundo. Vejo aquela mãe, amorosa e vigilante, cujo coração acompanha o filho à escola e ali fica, invisível, sentada na mesma carteira.  Toco o sofrimento de quem está acamado e paralisado, sem pernas para o mundo mas com asas para o optimismo do dia seguinte. E a seu lado, estende a mão um   anjo de Belém para a dor e para a solidão do sofredor. Sigo atrás daquele que bate à porta de alguém para pedir perdão do mal causado, Assisto, comovido, ao abraço da paz entre irmãos desavindos, e vejo nisso o mais seguro formulário para os Tratados de Paz entre as nações. Ponho os meus pés nas pegadas de todos os pedagogos e pastores, pais e avós,  que, sem dar nas vistas, colocam pedra sobre pedra no monumento silencioso da história.
          São os infinitamente “Mais” deste e de todos os bissextos da roda dos tempos. Nunca ninguém os trará à varanda da fama e jamais verão o seu nome nas bancas dos feirantes publicitários.  Mas são eles o fermento na massa, são   o rio criador que põe a terra verde e a alma em festa!
               Small is Beutiful – será o seu hino triunfal, esses para quem o “maior troféu do dever cumprido é ter cumprido esse dever”. Peço licença para alistar-me nesse acampamento onde o dia nunca acaba e o Ano é sempre Novo!

         27.Dez.16

         Martins Júnior

domingo, 25 de dezembro de 2016

CHÃO DE ESTRELAS PARA O NATAL 2016



   Nasci  Aqui
Nasci Aí
E nasço dentro de Ti
Quando e como Tu quiseres

Homens e Mulheres
Crianças, Jovens de qualquer idade
Estou no Vosso Campo
E na Vossa Cidade

Se amais a Terra onde habitais
E Eu também habito
Tereis sempre Bons Natais
Subindo da terra que abraçais
Até alcançar o Infinito
  

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25.Dez.16
Martins Junior

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

PÃO DE CASA CHAMADO PERDÃO


Esta é a noite de amassar. Bem depressa vou eu até à lareira do forno,  porque  é a  amassadura do pão de casa para a Ceia de Natal. Sem este pão caseiro, não começa a festa.
Na minha aldeia, há um forno comunitário. Há mais de quarenta anos reúnem-se os vizinhos nesta noite e logo  amanhã de manhãzinha sai o pão dourado do trigo dos nossos  campos. Dos nossos campos, todos iguais e todos diferentes, vêm as espigas, cada qual com o seu grão: mais branco ou mais escuro, mais crescido  ou mais escasso,  mais apetecível um ou menos o outro, consoante o lote de terra e a moenga do moleiro.
Mas todos se misturam. Antes da pá que os conduz ao fogo, a massa é tendida à força de agressões braçais que fazem tremer a velha ceira redonda em cima da mesa da cozinha. O fermento é o segredo para a levedura perfeita. Ele há de tantos ingredientes e matizes, iguais à diferença de cada amassador. Há fermento de paz e há-o de amargo travo. Há-os sabendo a amor e há-os fedando a ódios tribais.
Mas todos se misturam e descansam no mesmo berço, geminando sonhos de encontro, chamas antecipadas de apertados abraços, por vezes duros, dolorosos.
A massa vai ao forno e o que antes era sonho e chama frágil faz-se  incêndio de luz capaz de  matar  fomes e  sedes que vêm de longe e que os vizinhos nunca  tinham saboreado, assim, de coração franco e cara descoberta. A festa começa lá dentro e cresce no meio da rua, onde todos cantam o pão do amor e o vinho da alegria.
É assim na minha aldeia. Há mais de quarenta anos!
Amanhã, seis da madrugada a bater no coração, todos trazem uma abada invisível daquele pão caseiro que tem registo de marca e nome já firmado no íntimo de si mesmos: o PERDÃO!   É a sua festa, a noite do Perdão, na mesa comum da Ribeira Seca e sem a qual nunca haverá Natal.
Jamais esquecerei o código de fé e saúde psíquica que me ensinara um velho camponês (já reformado da vida), analfabeto de letra e sábio visionário na procura da Verdade: “Para mim, senhor vigário, o Perdão é como o pão. Se não vier de casa,  amassado e cozido, não há nenhuma igreja que lhe dê”.  
Feliz Natal, porque Feliz Perdão!

23.Dez.16

Martins Júnior

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

QUEM NÃO MERECE O NATAL


Da frescura matinal de ontem  passamos hoje à sua negrejanda negação  É a conclusão lógica dos trilhos percorridos nestas madrugadas de expectativa natalícia, pela mão  do cientista, teólogo místico e ecologista Teilhard  de Chardin. “Toda  a espiritualidade tem a sua raiz primeira na Matéria, no Planeta, na Terra que pisamos”. Acompanha-nos também, ao logo das chamadas Missas do Parto,  Leonardo Boff, o teólogo defensor da “sua” Amazónia brasileira. E por fim, avoluma-se a claridade  pelo  iluminante projector universal do Papa Francisco quando chama à Terra a nossa “Casa Comum”.
 O evento crucial do nascimento dessa Criança, “Cristo Cósmico”, como lhe chama Chardin, nas campinas de Belém é bem a meta e o protótipo da dignidade que merece toda a criatura. No pensamento de Leonardo Boff, “todos os seres da natureza são cidadãos, sujeitos de direitos, de respeito e veneração… Cuspir no chão é cuspir em cima de  si mesmo.”   Vem ao seu encontro o psicanalista  G.C. Jung quando conclui :  “Tudo o que me rodeia faz parte de mim”.
No tribunal da consciência colectiva da humanidade, são coercivamente chamados  ao banco dos réus, como arguidos em crime de guerra, todos aqueles que destroem  o ambiente, “envenenam o ar que os outros respiram”, citando George Bernanos. Todos os que matam os pulmões do mundo, o da Amazónia e as paisagens saudáveis dos nossos campos! Todos os que, abusam do poder e do dinheiro para assassinar quem recebeu a dádiva da Terra que é de todos!
Pelos abomináveis feitos contra a humanidade, é caso para entrarem na lista negra tantos que conhecemos, entre os  quais:
Todos os Bush’s que invadiram sadicamente o Iraque.
Todos os Trump’s que atiram às feras  indefesos imigrantes.
Todos os FMI’s que emprestam para, depois, devorar  a vítima.
Todos os Schaubel’s que, a frio, submetem os pobres ao seu jugo.
Todos os Daesh’s que fazem de Alá um criminoso sanguinário.
Todos os Kim Jun-un’s  que afogam  os manietados do regime.
Todos os Panamá’s que roubam às claras o seu país e o seu povo.
E todos  aqueles  que quem me lê conhece,  perto ou longe de si.
Não merecem nem presépio nem Natal do Cristo Libertador. As autoridades religiosas deveriam intimar, sem medo de perder sujos privilégios,  esses prevaricadores  letais do ambiente, dos bens fundamentais do Ser Humano, da dignidade transcendente das Pessoas. Regressem às origens, a Santo Ambrósio, bispo de Milão no século IV que, ao tomar conhecimento da invasão do território pobre de   Tessalónica, a mando do Imperador Teodósio, proibiu o mesmo Imperador de entrar na sua catedral, obrigando-o a fazer penitência e arrependimento durante um mês inteiro nas montanhas geladas dos  Alpes. Outros tempos em que a Igreja e os crentes não usavam a hipocrisia como moeda de troca!
Impossível. Que autoridade moral tem um bispo que, subjugado ao poder político,  volta as costas, persegue e mutila os “membros do Corpo Místico de Cristo”, situados na periferia da cidade onde vivo?... E ainda  são capazes, os da mesma igualha episcopal,  de pregar na noite de Natal que Jesus-Menino abriu os braços para abraçar todo o muno... Merecerá entrar no presépio quem chuta sem remorso  para a valeta gente boa, gente crente?…
Oh, Ambrósio de, bispo de Milão, vem de novo para denunciar desassombradamente  ao mundo os usurpadores do presépio de Belém! Que arrepiem  caminho, que limpem a atmosfera e restituam aquela  dignidade,  a que  todos os Seres, emanações de Deus, têm direito por natureza!
Façamos tudo ao nosso alcance para  entrar,  por direito e por amor,
no presépio verdadeiro e saudá-lo   na sacrossanta Noite de Natal.

21.Dez.16
Martins Júnior



segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

NATAL DA TERRA – E TERRA DO NATAL


Haverá aí alguém capaz de juntar numa única e vasta plataforma todos os Natais: os de inspiração popular, os da paleta gótica de um Fra Angelico, os da primorosa Escola Flamenga, onde o Menino nasce num salão real, com as cortinas de cambraia a abrir-lhe a alcova. Estarão lá também os estonteantes néons de feira, os pingentes de sininhos, bolinas, extra-terrestes pendurados nas espiguilhas, os das árvores de plástico cromado, enfim, toda a gama de produtos com que se entretém o vulgo. E todos eles sobrevoados pela abóbada colossal do Gloria in Excelsis Deo.
Como um único episódio dá miríades de novelas!
Mas é para a descoberta desse sentido último, que durante nove madrugadas, sem interrupções,  servem as Missas do Parto.
No modesto templo que habito, descobriu-se o que vemos todos os dias  - e todos os dias pisamos na romagem da vida. É o Natal da Terra, ecologista sem tese, tremendo e singelo como o chão que nos tem. O Natal sem cortinas de fumo e sem ferrolho nas portas: é o Natal aberto, livro inescrito onde até os analfabetos sabem ler. Em síntese, este ano temos seguido, pela mão de Teilhard de Chardin,  a viagem dos nove meses em que se operou a gestação do Menino no seio da jovem Maria de Nazaré.
          Não é fácil (bem pelo contrário) “partir o pão aos pequeninos” – na mimosa expressão do clássico Pe. Manuel Bernardes - traduzir o génio criador, telúrico e místico, ao mesmo tempo, daquele que fez da matéria a incarnação do espírito, a sua rampa de lançamento para o vértice da convergência de quanto existe, a sua cosmogénese, em que todos os elementos convergem naquele que  é o Alfa e o Omega da História.  Mais concretamente, o parto das missas nesta estância rural consiste em reconhecer que, afinal, a única espiritualidade possível é a que começa no mais íntimo da terra e sobe até aos confins sem fim do Autor Supremo.
               Cito o Pe.Teilhard de Chardin, o homem dos desertos  e dos mares, das nervuras vegetais e dos microssistemas povoados de todo o mistério das espécies:
“Tempera-te na matéria, Filho da Terra,
banha-te nas suas camadas ardentes, porque ela é a fonte e a juventude da tua vida… Ah! Tu pensavas poder prescindir da matéria, porque o pensamento se acendeu em ti. Tu esperavas estar tanto mais vizinho do espírito, quanto mais meticulosamente desprezasses aquilo que te toca, mais divino quanto mais vivesses na ideia pura, angélica, separada do corpo, hostil teu ao próprio corpo… Pois bem, quase morreste de fome”.
Concretamente: é a partir do natural que chegamos ao espiritual e ao sobrenatural, apreciando e defendendo o ambiente, a atmosfera, o ar que respiramos, a flor que acariciamos, os frutos que comemos. A natureza concentra o gérmen de toda a ascese e de toda a mística,  isto é, de toda a ascensão do ser humano até ao Ser Divino.
A mensagem de Teilhard de Chardin não encontra melhor tradução e sentido como no nascimento dessa Criança que nasceu colada à terra e que mais tarde, já adulto, tudo quanto ensinou bebia a inspiração primeira nos trigais, nos vinhedos, nos pomares, nos lagos e rios da sua pátria. Não precisou de recorrer a silogismos pretensiosos ou a tratados teológicos. A vida nele era a filosofia e a teologia essenciais. Identificado com Teilhard de Chardin está o corajoso testemunho do Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si.
É esta a mensagem do presépio. Bem longe, tanto da sofisticação ornamental como da doutrinação oficial e dos rituais folclóricos. É esta, também, a Eucaristia  vivida entre nós durante nove dias, em homenagem à ´Mãe Terra, à Mãe-Vida, Senhora do Parto!

19.Dez.16
Martins Júnior


sábado, 17 de dezembro de 2016

A PAPADA MAIS GOSTOSA DO MUNDO --- Uma espécie de conto de natal


“Era uma vez”…  Podia  começar assim  a lengalenga de hoje, tal como nos contos  de fadas e duendes. Mas não. Vou começar pelo “Foi uma vez”! O espanto da exclamação significa  um facto verídico e  o apreço  da sagacidade popular.
         E lá ai a história, que bem podia apresentar-se como um conto de natal, tão diferente porque, aposto, talvez nunca ninguém  contou outro igual.
         Era o malfadado tempo da colonia na Madeira, tempos duros de escravidão a que eram submetidos os pobres camponeses, os “caseiros”. Entregavam ao senhorio metade da produção agrícola, pagavam galinhas  pelo chão da palhota, a que chamavam casa. O mais típico e requintado, neste caso, era a obrigatoriedade implacável de levar ao senhorio a papada do porco que eventualmente fosse criado no terreno. A papada era considerada a parte nobre e mais gostosa do bicho e, por isso, direito austero do amo. O caseiro e os seus numerosos filhos bem desejavam em vão provar a cobiçada goela do suíno. E o  pai logo atalhou sem respirar fôlego  : “Ninguém lhe toque, o sr. administrador do concelho, que é o nosso,  mete a gente na cadeia”  
Falta completar o cenário com esta notícia: A matança do porco era obrigatoriamente e religiosamente o “Dia do Ó”, o 18 de Dezembro, nem antes nem depois, sob pena de sanção superior.
         Aqui começa a trama, o argumento do filme.

         José era um miúdo franzino, o mais novo   de uma família de doze. A face e os olhos denunciavam um adolescente imaginativo e perspicaz.  “Pai, este ano vai-se comer a papada do porquinho da festa.  “Deus te livre, cala-me prá í essa boca, diabos te levem” – intimou-lhe o pai. “O sr. amo ainda manda prender a gente todos”.  O rapaz, vencido mas não convencido, afastou-se, resmungando para o inditoso porco: “Vais ver, vais ver”.
Três meses volvidos, vem o nosso José, ousado e lampeiro, chega-se ao pai: “Olhe, este ano mata-se o bicho uma semana antes do ‘Dia do Ó’. Vai-se ao chiqueiro, tira-se  a porca  (afinal, era porca), veja lá: já não se aguenta em pé com as treze arrobas que tem em cima do lombo. Tá gorda demais. Ah, e sou eu que vou levar a papada à casa do sr. amo, lá na vila. Ele até pode-me dar dois tostões para a festa”.
Dito e feito. Os irmãos a postos, o pai ansioso por salgar a carne para o ano inteiro e  da  gordura fariam banha. Feita a queima de pinheiro, o pobre ‘chico’ fica opado, cortam-lhe a papada e na tarde desse dia lá vai o rapazito, “pernas para que vos quero ”, mas sempre com o coração aos saltos, não fosse o senhorio apanhar-lhe  a marosca.
         - Senhor amo, meu pai mandou-me trazer a sua papada”. Abre, nervoso, a cesta e joga para o mesão da cozinha o pesado tributo, com um estrondo que assustou o próprio dono da casa. “ Então, seu fedelho, nem sequer  tiras o barrete  ao teu senhorio?”.
         Tremendo de medo, atira o boné ao chão. E o latagão, sentado à secretária velha,  desconfia e indaga com o pequeno: “Mas, como é isto? Ainda falta uma semana para o “Dia do Ó”.
         - Ah, sr. amo  (e dobra-se todo), esqueci-me de dizer que  meu pai tinha a porca doente e matou hoje de manhã, prá gente aproveitar alguma coisa..
         - Seu malandro  - levanta-se irado o homem, mais opado que a porca do caseiro. Vou-te mandar já para o calabouço.
         O pequeno treme, treme, ajoelha-se diante do administrador e chora como uma  pecadora arrependida.
         - Desaparece com isso daqui. Então tu vens  matar-me com carne gangrenada? Vou-te matar aqui dentro.  E a seguir vem o teu pai.
Enquanto o senhorão vociferava, o miúdo aperta  com as mãos a apetecida papada dentro da cesta e, ao último berro autoritário, fisgou-se porta fora, meteu-se pela ribeira que lhe encharcava as pernas. Enfim, chegou a casa. E antes que o pai lhe perguntasse pelo sr. amo, o rapaz abre a cesta de vime, como se fosse a maior bola de ouro  do mundo. “Eu não lhe disse, pai, que este ano a papada era cá da gente. Pronto, tá aí.!
O aldeão sexagenário, temente ao senhorio como se  teme a Deus, baixou a cabeça, cruzou os braços, boquiaberto: “Nunca pensei que fizesses isto, meu filho. Agora é que vão ser elas”.
“Elas” ficariam para outro dia. Mas nessa hora houve festa em casa, comeu-se a papada e até a lenha  da cozinha ria-se estrepitosamente na lareira,  porque o pequeno José tinha enganado o justiceiro  dos camponeses, os espezinhados  de outrora, pobres servos da gleba, seus avós e tetravós.
Foi um Natal diferente, vitorioso, com folias, machetes  e cantigas ao desafio, porque o José, o elo mais fraco, tinha quebrado a cerviz ao senhorio: “Ele já comeu papadas a mais, gesticulava. E a gente aqui em casa, nunca lhe metemos o dente. Vamos comer e beber e dar graças ao Menino Jesus por esta oferta”!
O que se passou depois não vem ao caso. O certo é que, não obstante a pequena fraude do José,  sempre ficaria na história a lição de que o mais frágil pode ganhar ao mais forte, o mais pequeno pode derrubar o gigante, como David a Golias. Nesse dia, José, o mocinho, tornou-se o rei da casa.

 17.Dez.16
Martins Júnior



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

“VIRGEM DO PARTO, OH MARIA


Alvíssaras pelo parto de Jesus!... Eis-nos transfigurados, em bucólica levitação, levados pela tradição, pelos avós e bisavós, que lá de longe, muito  longe, um longe invisível, vêm sentar-se à nossa mesa nesta estância aconchegada do Natal. Bom é passar o facho luminoso das antigas gerações para que a ponte da história não se quebre, muito menos por nossa causa. Não se sabe, porém, por que nesga de originalidade anteciparam a folia para o dia 15, quando manda a tradição que seja o dia 16 de Dezembro: os nove dias ininterruptos, como ininterrupta foi a gestação do Menino até à hora em que nasceu.
Falei em folia. E é assim mesmo. Saem à rua os pandeiros e as castanholas, os búzios fazem o solo cavo, ao som das violas, rajões e acordeões. Os sinos acordam mais cedo, depois de passar uma noite em claro para não deixar o sol sair antes do seu lamiré precursor. A romaria enche a noite de artifício luminoso (nalguns casos, até, de ribombo foguetório) e tira os vizinhos da cama… vamos prá festa, prá romaria. E o templo da Virgem do Parto enche-se de fiéis à tradição. Só não sei se a Parturiente fica sossegada com tamanho alvoroço, alegremente regado com um fundinho de “macia” caseira. É o Povo, na sua genuína, intrínseca demonstração de renovada vitalidade campestre, quase bíblica.
E por tratar-se de um recanto singular, intimista, mas aberto a quem  vier por bem, estranha-se  a devassa publicitária com  que se estardalhaça aos quatro ventos  um gesto comunitário que só vive e sobrevive pelo calor humano, pleno de verdade identitária do agregado que o constrói. Choca-me quando  ouço falar que os governos ilhéus já servem no menu turístico as “Missas do Parto”, artificiando-as, deformando-as, amputando-lhes os direitos de autor e consumidor de um Povo que nada  no ritual tradicional, seu, muito seu, como o peixe na água.
Entendo e sinto – porque é nessa praia que também mergulho nesta quadra, embora de formato próprio do lugar  onde habito – sim, entendo que há certas manifestações que deveriam deixar ficar-se no seu figurino endémico, que, como usa dizer-se, “não são para vender”, mas para viver, sobretudo quando têm a ver com a crença e a religiosidade de quem com elas se identifica.
Assim, parece-me puxado pelos cotovelos esse projecto de candidatar a património imaterial da humanidade as “Missas do Parto”. Respeito, mas confesso que sentir-me-ia muito mal ziguezaguear num palco “para inglês ver”, quando é no chão, ombro a ombro, coração a coração, no boca-a-boca das cantigas que dá gosto em participar. Ali, dentro ou fora do templo, ninguém é espectador, todos são intervenientes na fala, na prece e no canto. E se vamos pelo “exquis” (desculpem mais este galicismo) e pelo folclore da coisa, então candidate-se o arraial do Bom Jesus da Ponta Delgada, onde as pessoas pernoitam bem aguadas debaixo das latadas. Ou a Festa dos Milagres. Ou da Piedade. Ou da Fátima. Há um núcleo dinamizador em todas essas devoções que não se deve deixar estragar, nem sequer macular com interesses mercantis e outros afins.  É que, por este andar  (longe de mim  ofender o pudor de quem quer que seja) qualquer dia o porco vai reclamar que a sua matança também tem pés para entrar na Unesco e exigir  tão cobiçado galardão. É original, é típico, é tradição ( Credo, Abrenuntio!)
Têm graça as “Missas do Parto”, mais que não fosse porque unem as pessoas do lugar e realizam a osmose entre o sagrado e o profano. Os pagãos também o faziam com os seus deuses, desde tempos imemoriais. Tudo o que concorre para juntar o colectivo no mesmo abraço de festa, tudo é bom e inofensivo. Desde que não se incomodem as fleugmáticas nuvens da noite com estampidos anti-natalícios que sobressaltam os humanos que se sentem tranquilos nos “braços de Morfeu”.
Deixem em paz a “Virgem do Parto”.
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No próximo dia, rir-me-ei convosco por um episódio verídico, mas hilariante, que pertence ao corpo da Festa e revela a sagacidade popular em tornear o nó górdio com que os grandes deste mundo teimam em “sangrar” os mais pequenos.

  15.Dez-16

Martins Júnior

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

DOIS PORTUGUESES DO MUNDO E OS JORNAIS DE BAIRRO


O meu olhar desta terça-feira vale tanto como o seu contrário. No colorido estádio das opiniões, todas as bolas e todos os chutos valem, mesmo que não acertem no alvo. Cada qual é árbitro de si próprio. Foi neste relativismo, sempre discutível,  que anteontem me atirei ao relvado, timidamente, com a alegoria do presépio e da manjedoura transplantados para o rectângulo onde vinte e dois “pastorinhos” e três “reis magos” correram, lavraram, espernearam até mais não poder.
Mas hoje, a timidez deu lugar à coragem. A curiosidade  - ou a atenção - que me dispensaram os amigos, companheiros ‘blogers’, incitou-me ao desabafo que pensava curtir só comigo mesmo. E lá vai,  sem mais preâmbulos:
Foi ontem Dia Grande para todo mundo português. Porque dois portugueses encheram o mundo inteiro de prestígio e de esperança: António Guterres e Cristiano Ronaldo. Um, CR,  guardou, pela quarta vez, na mão e no bolso o merecido esférico de melhor futebolista do planeta  O outro, após longa caminhada entre os excluídos e  exilados, subiu ao topo do mundo para tentar transformar as lavas da guerra  no ouro da paz. Um saiu do chão da pobreza e alcançou as galas do “Jetset”. O outro, oriundo dos divãs do bem-estar  e das cátedras da Faculdade, desceu aos antros da miséria humana, “sujando as mãos na lama da pobreza”, como um dia se dirigiu corajosamente Francisco Papa aos seus correligionários.
Numa escala de valores, qual deles o maior?!
É aí que salta o vigor, senão mesmo a cegueira, do relativismo. Cada qual tem a sua escala. Na geoestratégia dos tempos que correm, um dos ‘galardoados’  tem o “rectângulo verde” como  se fosse o mundo todo. O outro tem por  seu rectângulo de acção o mundo inteiro, de todas latitudes e longitudes,  com a “missão impossível” da quadratura do círculo.
Os jornais generalistas de Portugal Continental, consoante o seu padrão valorativo, deram o destaque in contornável às duas personalidades, puxando para primeira página a feliz notícia, com  registo fotográfico assinalável. É da mais elementar interpretação jornalística inserir na primeira página os valores fundamentantes do respectivo periódico. Porque é no rosto, mais que nos interiores,  que se define a publicação e é com esse impacto visual  que pretende formatar a opinião pública.
Sem mais comentários - que os deixo a quem quiser desenvolver o caso – devo dizer que foi com repugnante surpresa que avistei os nossos dois jornais diários, cada vez mais iguais, apagarem liminarmente da primeira página o actual Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, na cerimónia do Juramento Solene, em Nova York, com a presença do Presidente da República e do Primeiro Ministro de Portugal, ao lado dos representantes de todos os países membros.  
Foi Nietzsche quem teorizou que ”o importante não é o acontecimento mas a sua interpretação”.  Pelos vistos, aqui não é Portugal. Como madeirense e português, sinto-me lesado e envergonhado.  Mas se acaso querem puxar pelo bairrismo ilhéu, relevando os que fizeram bem à Madeira – mais que só por isso não fosse – a memória escasseou aos publicitários, esquecendo-se que foi o Primeiro Ministro António Guterres,  quem perdoou aos madeirenses a colossal dívida de 110 milhões de contos, (550 milhões de euros) numa época de crise fatal para as finanças regionais.
O que mais conforta é saber, como Charles Péguy, que “o jornal de ontem já é  mais velho que a ‘Odisseia’ de Homero”.

         13.Dez.16
         Martins Júnior


domingo, 11 de dezembro de 2016

DIZ-ME ONDE TENS O PRESÉPIO… E EU DIR-TE-EI QUEM ÉS

                                              

Podia começar assim o teatrinho de feira que nesta semana “azucrinou-me” (não vem no dicionário erudito, mas está no expressivo glossário do povo), repito, “azucrinou-me” os ouvidos, os olhos, a cabeça, ao ponto de ter que fechar as bocas das rádios e as bocarras dos televisores. Até tenho a impressão que ninguém em Portugal se lembrou mais do presépio. O presépio estava na “segunda circular”.. Desde o alvor da aurora ao negrume da noite, era bola-bola-bola. Veio-me à ponta dos cabelos a profissão de fé do devotíssimo Artur Semedo, de há décadas; “A minha religião é o Benfica”.
         Arrisco-me a desiludir quem me lê, ao trazer a esta mesa - já adivinham – os futebóis. Levem à conta de rábula revisteira esta jocosa elucubração. Mas não vejo outra maneira mais eficaz de livrar-me da mais supina e vazia mediocridade com que me obrigam a pagar a factura do meu áudio.visual.
A avaliar pelo que  nos serviram durante horas sem conto, o presépio de muita gente esteve na Luz. A manjedoura brilhava pela originalidade: de tipo rectangular, enorme, onde os fanáticos esperavam deitar o menino. Em vez da vaca e do burro, lá estavam, de sentinela ao portão, a águia e o leão. Receosos que  fisgassem os pobres bichos, os xerifes arregimentaram umas centenas de “gorilas” que, à frente do grosso imprevisível, sustinham “o gado” (aqui cito  a tirada satírica do nosso Eça) assemelhando-se menos a uma legião de fãs ordeiros e felizes e mais às  hordas bárbaras  marchando  contra as muralhas  do Coliseu de Roma. Nem faltaram os três reis que, sendo de primeira água, vinham pintados de preto. Os pastores corriam desenfreados para a manjedoura, ora para um lado, ora para outro, enquanto o coro infernal de 63.500 anjinhos caídos da abóbada vermelha faziam estremecer o céu e a terra com brados e esgares à mistura com aleives às mães dos três reis, imperadores da arena.
         A cena não podia funcionar sem os profetas-exegetas, juízes de fora ou “treinadores de bancada” – cada tribuna tem os seus comentadores residentes – para medir a pontinha do dedo-à-bola ou bola-no-dedo,  a distância milimétrica entre a bota e a perdigota, enfim, a palha e a chama que vão alimentar mais unas semanas, até que venha outra.
         Enfim, deixo à livre inspiração de cada qual armar ou imaginar estes fanáticos presépios, sendo certo que cada terra tem o seu (fuso e uso), conforme as circunstâncias, desde o mais galáctico campeão até ao mais irrisório clube de bairro.
         O que nesta rábula incompleta pretendo comentar é a deturpação de valores, o sufoco inflacionário de uma actividade que, estando vocacionada para o culto de uma saúde holística da sociedade, se transformou no seu oposto. Ressalvo aqui dois votos positivos, civilizacionais, expressos por alguém, ainda antes do famoso “derby”: Que no fim do jogo, os dois treinadores dêem um ao outro  um amistoso aperto de mão (não sei se aconteceu)  e que nenhum adepto perca a serenidade e o equilíbrio psicológico, sabendo que, seja qual o resultado, ele não nos  vai resolver nenhum problema nosso nem vai interferir no dia-a-dia das nossas vidas. O sol voltará a nascer sempre, com vitória ou com derrota.
         E da minha parte: Que se construa dentro da lapa de cada coração e de cada mentalidade o presépio invisível de um Mundo Novo!

         11.Dez.16

         Martins Júnior    

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

QUEM É O DONO DO NATAL ? QUEM É O SEU BENEFICIÁRIO ?

  
        A minha saudação de hoje tem tanto de ternura como de inquietação, senão mesmo de indignação. Num recanto do presépio, de todos os presépios do mundo, dei comigo a pensar nas duas perguntas em epígrafe. Sim, na roda gigante em que se balanceiam, como autómatos teledirigidos, milhares de homens e mulheres atirados para o maranhão das euforias cruzadas da época, bati à minha própria porta para saber  quem é, afinal, o dono  e, da mesma feita, quem é o beneficiário de iure et de factu deste Natal, de todos os Natais. Deixei passar a  turbamulta de notáveis, doadores oficiais das festas, os pelotões de fazedores de luz aos borbotões, os hipercamiões abarrotados de mercadoria sofisticada. Ao fim de tudo, apurei a vista interior e vislumbrei que o grande autor e o maior destinatário deste “maremagnum” de vaidades anda por aí - um ser frágil, indefeso, sujeito aos empurrões da multidão. O autêntico dono do Natal é esse “pequenino-grande ser”, chamado Criança!
         Não vejo quem se lhe possa comparar. O relato puro e seco do momento histórico inicial assim o diz. Quer se acredite ou não  que o Menino de Belém é o Deus personificado, quer se admita ou não a virgindade daquela Mãe Maria, um monumento indestrutível ali se impõe: a Criança! Toda a grandura excelsa e toda a colossal ressonância que varre o universo, desde então até hoje e sempre, estão nos braços de uma Criança que, não obstante a sua fragilidade genética, segura silenciosamente os gonzos do tempo passado, presente e futuro, tal como Hércules  sustentando as mitológicas colunas do mundo.
Insisto na titularidade de “dono e destinatário de todos os Natais” – a Criança - porque o “Príncipe da Paz”, o portentoso Messias Prometido poderia  ter surgido  no pico sebastianista da mais alta montanha, aureolado do mais fino diamante real. Mas, oh decepção tremenda: reduziu-se a um débil recém-nascido, para mais, rejeitado por todos os proprietários da cidade. Mais incisivo que o aspecto físico daquele bebé, o que fala mais alto é a sua simbologia gritante.
Com efeito, a Criança não passava, naquela época,  de mero episódio descartável, sob qualquer pretexto. Confira-se o Salmo 136, por onde se vêem a indiferença e a crueldade com que eram tratadas as crianças. “Feliz e bem-aventurado será  aquele que agarrar nas tuas crianças de peito e a as espedaçar contra uma rocha”. A Criança, pois, objecto de vingança pela derrota dos judeus frente ao povo vizinho, como testemunha o “santo” Rei David. É conhecida a tristemente famosa Rocha Tarpeia, na Antiga Roma, de onde eram atiradas as crianças deficientes, a par dos criminosos de lesa-pátria.
A Criança, sobre a qual se construiu o mundo futuro! O nascimento em Belém veio reabilitar definitivamente a Criança para a história, veio colocá-la na centralidade de todos os Natais e de todos os tempos. Aqui se inscreve a minha ternura dinâmica. E aqui, também, a minha indignação pela indiferença com que são tratados os que ensaiam os primeiros passos da vida. Sem pretender dramatizar os cenários, ouso denunciar com veemência os atentados à Criança e ao seu saudável crescimento evolutivo, seja  o cortejo esquálido das crianças refugiadas, seja o nauseabundo poço da pedofilia, seja ainda a prepotência de ampliar turmas e cortar escolas sem atender ao superior interesse dos utentes.
Perante tais abusos, apetece mandar arrastar para outra “rocha tarpeia” a prosápia hipócrita de iluminações feéricas ou as parentes balonas das armas de guerra e transformá-las em berços de afectos e alcovas de luz para o advento do verdadeiro Natal. Uma saudação muito emotiva para com os pais e encarregados de educação, professores, vigilantes, assistentes dos estabelecimentos de ensino.  Alto e bom som, proclamo que sois vós os autênticos construtores  do presépio original. São as vossas mãos que, dia-a-dia, vão levantando os degraus e a beleza das “lapinhas” humanas, aquelas que exclusivamente interessam ao mundo.
Que nunca se acabem, ao longo de todo o ano, os acordes felizes da Tuna Infanto-juvenil do Centro Cívico da Ribeira Seca, como  documenta a gravura, na abertura do presépio que as autarquias de Machico construíram no centro da cidade.  

“Cantai Crianças nesta Festa do Povo
Cantai Crianças p’ra fazer um Mundo Novo”.

09.Dez-16
Martins Júnior

        

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

DERROTADO “COM A AJUDA DE DEUS” --- ou --- O TIRO PELA CULATRA

    
    Se tem um “tempinho” livre nesta azáfama da Festa anunciada, então fiquemos juntos, rindo com a sátira da vida e  aprendendo ou castigando os costumeiros abusos a que nos afeiçoamos, sem dar por isso. É este um caso-tipo do velho adágio ridendo castigo mores.
         No último apontamento que aqui deixei, pretendi apenas recolocar o Natal na sua matriz primeira, ou seja, o almejado sonho de um mundo novo, justo – diferentemente da sua redução pura e simples ao folclore consumista dos licores, dos foguetes, da carne de “vinha d’alhos”. Hoje, situo-me no lado oposto da cena. Se ontem estranhei a deformação do Natal nas mais alienantes manifestações profanas, agora divirto-me com o uso e abuso da crendice rasteira, não menos alienante, que se apresenta sob o nome de Deus. Quem me trouxe a risada mefistofélica do dia foi o jornal “Le Monde”, na análise às eleições de domingo passado, na Áustria. Quando se temia a eleição do primeiro neonazi, um jovem, herdeiro do despotismo  hitleriano, eis que os austríacos colocam no trono um ecologista, para mais,  septuagenário. Até aqui, tudo bem, nada a opor nem  a contar. A contar, essa sim, é a nota transcrita pelo matutino francês que passo a citar:
         “O FPO, partido do candidato  da extrema direita, Norbert Hofer, cometeu um erro, ao instrumentalizar a religião. O seu slogan ‘COM A AJUDA DE DEUS’ causou o pânico nas pessoas. Foram  numerosos os que apoiaram o ecologista Van der Bellen, por causa disso”.
           Que grande Povo este! Fosse entre nós – e somos testemunhas disso – caía água benta como chuva e, com ela, uma enxurrada de votantes, vivos e defuntos. Mas passemos adiante. Porque o que me fez rir, de um gozo intraduzível, é que o tiro saiu pela culatra. E mais: confirmei a convicção do abuso satânico e, ainda por cima, indisfarçado com que o populistas manipuladores  da opinião pública fazem do nome de Deus.
         E não apenas, na política. Resumindo: aquele padre que teve o desplante de atribuir os recentes terramotos na Itália aos gays e afins, como castigo de Deus!  Ou o sobrevivente do recente desastre aéreo quando disse agradecer a Deus que lhe segurou a vida. E os outros, as vítimas inocentes, foi Deus que lhes ceifou o mesmo direito à vida?... Cuidado e  “tento na língua” e na consciência!...  A superstição, que é outra forma de abuso, entrou no linguajar quotidiano, em expressões  mecânicas, tais como: “O exame  vai correr bem, se Deus quiser. Vai dar chuva (ou sol) se Deus quiser. Até amanhã, se Deus quiser”.
E se o homem não quiser?... Ou  o movimento das galáxias?... Quanto desastre, quanta crueldade, quanto acidente e, sobretudo, guerras, conflitos, doenças até, que nada têm a ver com Deus!... Foi isto mesmo  que observei à nossa diva fadista Amália Rodrigues, no Porto Santo, aquando das filmagens das “Ilhas Encantadas”, de Carlos Villardebô, já lá vão mais de cinquenta anos. Ao despedirmo-nos no hotel, onde o nosso Grupo Folclórico actuava, Amália repetia religiosamente “Até amanhã, se Deus quiser”. À minha observação, respondeu: “Sabe, padre, isto é um hábito desde pequena e não consigo desfazer-me dele”.  O dever de respeitar (e respeito-o) não nos inibe o direito de pensar e ganhar conclusões lógicas, filosóficas, teológicas, mais respeitadores que os “slogans”  da extrema direita austríaca: “Com a Ajuda de Deus”.
         O automatismo gratuito e ofensivo chega ao cúmulo de trocar a sequência temporal dos acontecimentos, como o daquele futebolista que, após o jogo de que a sua equipa saiu vitoriosa, desabafou, extasiado: ”Tive sorte. Marquei aquele golo, se Deus quiser”. Assim mesmo.
         Rindo e pensando. Esta crónica, ao ritmo do pulsar dos dias, serve-me de conclusão: ao mesmo tempo que se esconde e esquece a grande mensagem natalícia sob as roupagens do consumismo efémero, da mesma forma se censura a banalização da Divindade em assuntos que têm exclusivamente a ver com a nossa responsabilidade individual e colectiva. Mais que não seja, tenhamos cuidado com as palavras para não nos acontecer o que sucedeu  aos neonazis  austríacos: Perderam “Com a Ajuda de Deus”…

07.Dez.16

         Martins Júnior