sábado, 13 de junho de 2015

VARIAÇÕES SOBRE O “SANTO ANTÓNIO POPULAR”

E viva a festa!...
A marcha é liiiinnnnnda!...
Olha o balão! Venha mais  cor e mais tambor, soltem balões ou balonas, seja pelo Santo António, seja pelo São João, seja pelo São Pedro! O que interessa é que haja marcha, sardinha assada, sangria caseira, pão de trigo da terra. E vozes, muitas vozes, afinadas, esganiçadas, soltadas dos pulmões e dos corpetes das folclóricas raparigas, desfraldando a liberdade na grande avenida em Lisboa, ou nas ruelas do santo na Madeira e em todos os santantoninhos que há no mundo português. E se não for pelo santinho, que seja por Vénus, Júpiter e Baco, pelo brinquinho ou pela massaroca. O que importa é unir o povo, novos e velhos, moçoilas e rapagões, exorcizando com o missal de rua e por um dia, ao menos,  os pesadelos forrados na pele, as depressões que saem das grades sem pulseira nem polícia.
É o mês dos santos populares. Vibro e salto para a marcha,  saúdo toda essa euforia sem preço de que tanto precisamos. Mas soa-me sempre ao ouvido “esta frase batida”: Populares estes santinhos, porquê? E como? Quem abriu a cabeça ao povo para meter-lhe tanta simpatia, tanta popularidade a 1.000% pelos santinhos de junho?
E aqui volto atrás, sento-me, rebobino o filme e já não me apetece apanhar os marchantes sem responder-me a essas perguntas. Ah, é o Santo António, o que tem o GPS para encontrar os perdidos e achados, o engraçadinho de menino ao colo, o caçador dos namoricos furtivos, o santo casamenteiro… E agora é que não me dá mesmo nada alinhar nessa alienação das massas, à conta do santo. Nem do São João nem do São Pedro, que nada têm a ver com foguetes e balões. Mas então, a popularidade trimilenária  dos “festeiros”?
Falando claro, confrange-me topar e tocar o vazio de mentalidades avulsas que nada sabem dos homenageados da noite. António de Lisboa, o sábio do pensamento, não apenas bíblico, o mestre das humanidades, o acérrimo “opositor aos usurários, à prisão por dívidas, o defensor do proletariado” (leio no devocionário litúrgico que uso há mais de 50 anos)., E ainda: o inigualável cultor da eloquência do verbo, quer em Lisboa, quer em França, quer em Pádua.  Bem  lhe acertou o nome, cinco séculos mais tarde, ao “Príncipe da Língua Portuguesa”, o Padre António Vieira que,  tal como este, teve de abandonar a sua pátria para dar testemunho da Palavra no estrangeiro, mais precisamente em Itália. Volta, António de Lisboa, vem bradar aos usurários do século XXI, do FMI, do BCE e outros que tais, contra a sofreguidão dos magnatas desta “economia que mata” os povos do sul, os de aquém e além-mar!
Que sabem disto os ingénuos e sinceros foliões das marchas? Que entendem por António de Lisboa ou de Pádua os devotos de “círio de altura” na mão, tamanho mínimo comparado com a monstruosa pantominice que os pregadores lhes ditam do alto dos púlpitos neste dia, engrolando lendas milagreiras para tapar a portentosa fisionomia do grande protótipo da Sabedoria e da Coerência?!
Mas então deve riscar o preâmbulo-supra --- dir-me-eis vós. Eu digo que não. Continuem a folgar, não desistam de gatinhar versos como demónio, toca o harmónio, viva o pandemónio, tudo fixe desde que rimem com Santo António.
Mas… eu não esqueço a cantiga que o Estado Novo nos obrigava a decorar na escola : ”Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim…”, a que os parodiantes do teatro de revista acrescentavam “lá vamos pagando e rindo”. Ai, a força e a convicção com que nós, pobres crianças cantávamos, sem saber,  a própria sentença de condenados à miséria! Não esqueço a (melhor  desqualificativo não acho) “safada” exploração da mentalidade popular quando, antes do 25 de Abril, o fascismo incentivava o povo a construir  palhaços no 1º de Maio, o “saltar à laje”, para encobrir aos portugueses a gloriosa e dolorosa luta dos trabalhadores pelos seus direitos.
MORAL DA HISTÓRIA: haja festa e diversão, a pretexto dos Santos Populares, mas não se perca de vista a sua essência, a histórica estatura humana, intelectual e operacional dos Homenageados.
Termino, em “Post-Scriptum”, cedendo lugar à lenda transformada em poética beleza de Augusto Gil no  seu tão pitoresco e bucólico Passeio de Santo António, que o meu amigo Alexandre tão bem sabe recitar, como ontem o fez em Sesimbra e aqui, em Machico, nos nossos saraus de outrora:

13.Junho.2015
Martins Júnior

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PASSEIO DE SANTO ANTÓNIO

Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.
.
Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…
.
O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.
.
Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.
.
Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…
.
O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
… Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas…
........................E abalaram pró convento.


Augusto Gil

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