quinta-feira, 5 de março de 2015

CARTA ABERTA DE 1985

Estamos em maré alta de recordações daqueles dias marcados há trinta anos pelos atentados perpetrados contra uma modesta igreja e um povo pacífico, cujo crime foi o de afirmar a sua dignidade e a sua autonomia perante os invasores, os dois invasores tão poderosos quanto escandalosos, o Governo e a Diocese.  Foi dura a prova. Mas no meio da luta os cristãos da Ribeira Seca contaram com amigos, de perto e de longe. Ontem os administradores da página da Ribeira Seca mostraram a solidariedade de artistas portugueses, os “Trovante”, Sérgio Godinho, Zeca Afonso, Pulido Valente.
Hoje vou dar a palavra a um Homem sem medo, o Padre Mário Tavares Figueira, então pároco de São Tiago, Estreito de Câmara de Lobos. que desde a primeira hora solidarizou-se com a população da Ribeira Seca e deu a cara, publicamente,  através de uma carta  endereçada nessa altura  ao bispo Teodoro Faria que tenho a honra de transcrever:




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“PARÓQUIA DE SÃO TIAGO 10 de Março de 1985
PARA ESTAR COM O BISPO
É PRECISO QUE O BISPO ESTEJA COM CRISTO

Ex.mo e Rev.mo Senhor D. TEODORO FARIA
BISPO DO FUNCHAL

Com imensa mágoa e depois de muita oração e de muito reflectir, eu, Padre da Diocese e com responsabilidades de uma paróquia, escrevo para dizer que V.ª Rev.ma  prestou um mau serviço à Igreja de Cristo, com o seu proceder para com a Comunidade paroquial da Ribeira Seca.
Faço de um modo público, porque o acto foi público e só publicamente se pode desagravá-lo.
É verdade que o povo tinha como “seu pároco” o Padre Martins que perante a Diocese estava em situação incorrecta e delicada, mas também é verdade que o povo o sabia e o queria. O Padre Martins nunca esteve na Ribeira Seca contra o povo, nem usou qualquer poder, imposição ou arte que coagissem os paroquianos ou roubassem a sua liberdade.
(…)
O Senhor Bispo poderia reclamar o direito da Igreja e Casa Paroquial. Mas quem construiu aqueles espaços senão o povo que reclama para si o direito de celebrar o seu amor para com o Senhor e quer responsabilizar-se por isso? Um Bispo que se apresenta como um proprietário diante de uma comunidade destrói a sua figura de representante dos Apóstolos que viveram sem bens, mas cheios de Verdade, Amor e Sacrifício.
Todos sabemos que o problema se gerou com a actividade politica do Padre Martins. Mas porventura a Ilha da Madeira conheceu algum politico mais activo do que o D. Francisco Santana, enquanto Bispo do Funchal? (…) E V.ª Rev.ma conhece algum órgão de comunicação social com maior informação político-partidária que o “Jornal da Madeira”, órgão da Diocese, com um sacerdote à sua frente?
Sou forçado também a reconhecer que este proceder na Ribeira Seca foi um acto político oportunisticamente aproveitado por V.ª Rev.ma e muito bem explorado pelo Partido Governante.
(…)
No dia 27 de mês de Fevereiro a força policial “recuperou” a Igreja da Ribeira Seca para entregá-la ao seu “proprietário”, conforme o pedido formulado pela Diocese, na base do artigo II da Concordata  entre o Estado “Santa Sé”  e o Estado, “A República Portuguesa”.
Não houve nem uma palavra de Evangelho!
Pareceram dois ladrões que se juntaram para fazer um assalto e repartir os despojos.
Há dois mil anos, o Sumo Sacerdote Caifás, com o apoio do Sinédrio e para repor a Ordem, o Direito e Unidade, condenou JESUS à morte. Mandou-O para Pilatos, o Governador da Judeia e este, com a sua força policial, crucificou JESUS.
Pela Idade Média além, a Igreja, com o mandamento “Não matarás”, muita gente matou na fogueira e de outros modos para a manutenção da sua Ordem, da Sua Unidade.
Nestas coisas, a Autoridade Eclesiástica não gosta que se fale, porque a ignorância dos crimes passados faz com que se não dê pelos presentes.
Fala-se  da não violência,  ataca-se a Teologia da Libertação. E no entanto, Vª Rev.ma Senhor Bispo aparece “armado?... Que grande contra-testemunho?
Tantos e tantos do meio do povo, convictos da VERDADE de CRISTO, pregam- nA entre os irmãos e imprimem no seu viver uma doação extraordinária pela Sua Liberdade e Amor. Se soubessem de tanto lixo que a Igreja transporta, como ficariam escandalizados!...
Estamos em período quaresmal, celebramos o Calvário de JESUS e sabemos que o Calvário continua no mundo.
Neste mundo, para compreendermos o sacrifício de JESUS de Nazaré, temos como imagem a História da Ribeira Seca.
Que pelo menos, Senhor Bispo, surja o sinal da Redenção.

Submisso, respeitador, mas muito triste
Padre Mário Tavares Figueira”
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