domingo, 1 de fevereiro de 2015

UMA REVOLUÇÃO ENTRE DUAS REVOLUÇÕES – ITÁLIA E MADEIRA

“Menos com menos dá mais”, assim ensina o teorema algébrico. Da mesma forma, aproximarei um outro: “ímpar com ímpar dá par”, podendo inverter-se a semântica  figurativa  nestes  termos: se o “ímpar”  significa “perfeito”, a soma dos dois, isto é, o número “par” transforma-se na plena perfeição.
Vem esta tirada  “gongórica” a propósito dos dois  dias  ímpares  justapostos:  o 31  de Janeiro  e  o 1  de Fevereiro,  para  no mesmo  tronco  ímpar  fazer  surgir  a alma-par  de  dois  gigantes  construtores  de um  novo  ciclo  no  crescimento  da  árvore genealógica  dos  valores  humanos:  o  italiano  João Melchior Bosco e o madeirense  Laurindo  Pestana. Separados  em  vida  por mais de seis décadas  e distantes  por milhares de  quilómetros, ambos, sem  nunca  se terem visto,  irmanaram-se como dois caudalosos afluentes do mesmo rio em demanda de  um  sonho maior.
Começo  por  dizer  que não  me comovem  nem agradam  as cerimónias  oficiais  e mesmo  oficiosas  a  personagens  que  já  nos  deixaram. Salvo raras  excepções, os seus  promotores  o  que  mais  querem  é  chamar  a  si  os louros  dos homenageados.  Muito  menos  me agradam  as  estátuas  que  tornam  insensível e  morta  gente  que foi fogo e vida.  Pior  ainda  quando  lhe  amarram  as  mãos  enclavinhadas ou  lhe  inclinam  piedosamente  a cabeça  e  a  circundam  de uma  auréola  de  santos. São gostos.

Tanto  enigma,  para  quê? --- perguntar-me-eis. E eu respondo:
Para  sintetizar  o quanto  vivi  e  senti  ao recordar o  bicentenário do revolucionário pacífico  João Melchior  Bosco  (o chamado São e Dom  Bosco) , 1815-1888, e, lado  a lado, o verdadeiro atlante ilhéu. (sem “São nem “Dom”) Laurindo Leal Pestana, 1883-1951.  A ponte  que  os  uniu: a humanização dos “marginais” da vida. Os pilares que a suportaram: a infância e a juventude.
De João Melchior  Bosco quero  guardar a fidelidade à sua classe: órfão de pai aos dois  anos de idade, sofreu na carne  os  espinhos de  uma  família  colocada  na  periferia  da sociedade. Toda  a sua  vida  foi a  identificação  com  os da  sua  condição.  No fervilhar  da  Revolução Industrial, deparou-se  com  uma  juventude abandonada  na cidade de Turim. Simultaneamente defrontou-se com o chamado Risorgimento, que envolvia as intermináveis  guerras  pela unificação da Itália e, pior ainda,  a luta visceral  entre  esse desígnio nacional  e  a supremacia  do  Papado, com os respectivos  privilégios  territoriais  e jurisdicionais, os Estados Pontifícios.
A esta encruzilhada de fogo cruzado entre  duas revoluções,  o talentoso filho de  operário fabril  lançou-se numa  outra  revolução: alfabetizar,  promover  as  crianças  e  os jovens  destroçados  como carne  para  canhão  ou  ferrugem das oficinas.
Já  sacerdote,  teve  de  enfrentar  a  hostilização  do  bispo  da  diocese,  Lorenzo  Gastardi, que  o  marginalizou e lhe instaurou um  processo  canónico  sob  a  acusação  de  estar  a minar  a hierarquia  eclesiástica.  Só  mais  tarde, com a  elevação  de  Leão  XIII,  o Papa  do  Operariado, ao  trono  pontifício, ( recordemos a Encíclica Rerum Novarum) é que  tiveram fim  as  hostilidades.  Por  entre  ventos  e marés,  empreendeu  a  grande  e decisiva  criação  das  Escolas  Salesianas, espalhadas  por todo  o mundo, com o  objectivo de  abrir  às  crianças  e  jovens  os  caminhos  da vida, da  alegria,  da formação  integral, como  proclamava, há milénios, o poeta romano  Juvenalis anima  sana  in  corpore  sano (alma  sã  em  corpo  são).
O Espírito sopra  em  toda  a  parte. E  soprou  também  na Madeira.  Quantos  e quantos  terão  sido  os  promotores,  heróis anónimos,  sem glórias  nem  estátuas,  que  sentiram  e realizaram  o mesmo apelo  solidário!  Ficou-nos,  mais  de perto,  o esforço  sem  tréguas  de  um  outro clérigo, Padre  Laurindo  Leal Pestana, pároco  de  Santa  Maria  Maior  que, do “terreiro” da sua igreja, todos os dias  via com  os  próprios  olhos  a  miséria  física  e moral  que  cercava  crianças  e jovens,  ali no calhau de São Tiago e do Almirante  Reis.  E lançou  mãos  à  obra, concitando  contra  si  os olhares farisaicos dos  detentores  do  poder político e religioso. Mas nunca desistiu,  até  que formou  a  Escola das Artes  e  Ofícios, uma autêntica “universidade”, à  época,  para  a construção de uma  sociedade  nova. Caiu-lhe nas  mãos,  como  uma  bênção,  a vinda  dos Salesianos de D. Bosco  para a  Madeira,  os  quais,  mercê  da sua  organização internacionalmente estruturada, deram  continuidade a uma  obra  que,  sem  eles, talvez, tivesse ficado pelo  sonho  inacabado.
Incontáveis na Madeira e no Planeta, os contributos daquela criança, órfã de dois  anos,  fiel à  classe  operária a que pertencia ( ele foi proclamado o patrono de Brasília) bem  como, entre nós,  a do modesto mas  intrépido  lutador  que foi   pioneiro nesta causa, Laurindo Leal Pestana.
Entretanto, peço-vos só mais um momento para constatarmos  como no mais fino pano cai a nódoa. Do Colégio Salesiano, onde se ensinava a Alegria  e a Justiça social,  saíram (e mais tarde dela se aproveitaram) “exemplares” da  ditadura e da corrupção: Benito Mussolini, a personificação do fascismo,  assistiu em 1929 à beatificação de São Bosco,  cuja escola tinha  frequentado em Faenza.  E em 2005, foi o corrupto e  corruptor  Sílvio  Berlusconi que  proferiu altos elogios  a D. Bosco,  no  Instituto Salesiano  Santo  Ambrósio, onde  estudara  na sua juventude.
Folheando as páginas dos diários e  das redes  sociais,  talvez que entre nós se  possam  lobrigar, mutatis mutandis, idênticos episódios em  celebrações centenárias…
É sempre  assim:  o  poder  político, possesso daquela  estranha  ambição, a de  concubinar-se  com  o poder  religioso! E nem sempre  o olhar  espiritual da Igreja  faz  o  mínimo  esforço  para  evitar o mafioso conluio.
Aos  carismáticos líderes  João Melchior Bosco  e  Laurindo  Leal Pestana, feitos  da mesma  carne que nós, entregamos  os  crisântemos  da  nossa  homenagem e, mais belos  e  estimáveis,  os cravos vermelhos do seu sonho comum: seguir  as suas  pegadas!

31.Jan - 1.Fev.2015

Martins Júnior

Sem comentários:

Enviar um comentário