quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

BARRETES E ANÉIS - CARDEAIS AO ALTO!

Foi um fim de semana vistoso, multicolor, tintas garridas, onde se misturaram o Dia dos Namorados e os intermináveis carnavais por todo o mundo. Curiosa é a coincidência de um ritual religioso, precisamente da Igreja Católica  na Basílica do Vaticano que concitou as atenções de todo o planeta: a entronização (assim lhe chamo) dos 20 novos cardeais, em cujo elenco se conta o patriarca Manuel Clemente, bispo de Lisboa. Aí, por entre o clássico luxo das colunas douradas, sobressaía, olímpico e triunfal, o vermelho escarlate dos purpurados., um festival de brilho e chama, com anéis, barretes,  bulas de pergaminhos ou similares.. Que terão visto os milhões de espectadores  e que sínteses terão feito acerca de tão nobilíssimo cenário, tudo em manifesto contraste com a simplicidade de um homem que tanto se tem esforçado por  uma “Igreja pobre e para os pobres”?   
Talvez seja preciso começar por decifrar a nomenclatura originária de “cardeal” e um pouco dos seus desenvolvimentos ao longo dos tempos. As rotas que o barco deu para fugir àquele porto de chegada que a bússola lhe indicava!
Sinteticamente: o termo entrou no vocabulário católico, logo após o fim da perseguição aos cristãos, com a Paz que o Imperador Constantino ofereceu ao cristianismo:  organizaram-se, ao redor da cidade romana,  as paróquias, células da Igreja, com os líderes, os párocos e respectivos assessores ou coadjutores, os diáconos, os quais, por constituírem os eixos operacionais da Igreja, eram chamados “cardeais”, isto é, etimologicamente, os “gonzos” que agilizavam e punham em movimento a mensagem de J:Cristo. Eram conhecidos como “cardeais presbíteros” (padres), “cardeais diáconos” (coadjutores), criando-se mais tarde nas dioceses, os “cardeais bispos”. Cardeal significava acção, dinâmica, trabalho. Todas as funções ganhavam, portanto, a classificação de “cardinalícias”. Com a proeminência que a Igreja foi conquistando, promiscuindo-se com o poder temporal dos monarcas, a designação de “cardeal” passou ao patamar de um segregado, nomeado,  uma espécie de classe dos brâmanes”, a que o Papa Francisco diante dos próprios novos oficiais  chamou de “casta”, uma tentação que deviam evitar. E não se enganava.
Já no reinado de Eugénio III (1145-1153) os cardeais formavam o Senado do Pontífice. Tinham o privilégio de senadores, o Colégio Cardinalício, uma classe aristocrática restrita, cujo conteúdo funcional consistia em fiscalizar o Vaticano e escolher, em assembleia de voto, o Papa. Com o Papa Eugénio IV (1431-1447) os cardeais ocupavam, em termos de protocolo e hierarquia, um estatuto de precedência sobre padres, bispos, arcebispos e patriarcas. Isto com a particular circunstância  e o poder discricionário do Papa em nomear cardeal um elemento que não fosse padre ou bispo ou clérigo algum.
E aqui começa o reino do mais vil favoritismo e do mais descarado nepotismo, a começar pelo poder imperial. Todos os reinos empertigavam-se, à compita, para ter na corte pontifícia familiares ou mandatários seus, na categoria de cardeais. Mesmo dentro da própria hierarquia eclesiástica era idêntico o escândalo, como no caso do italiano Carlos Borromeo (mais tarde feito Santo) que, por ser sobrinho do Papa Pio IV,   ascendeu ao cardinalato, com a idade de 18 anos apenas. Incrível. Outros foram Primeiros Ministros, Thomas  Wolsey, Mazarino, Richelieu, Ximénez Cisneros etc.. Outros até chegaram a ocupar o trono real, o que, para nós não é novidade nenhuma: o cardeal D. Henrique, tio de D. Sebastião.
Basta fazer uma leitura  despreconceituosa da História, para chegar-se a esta conclusão: a casta (chamar-lhe-ei raça) dos cardeais foi a pior cizânia, o joio  infiltrado na seara da Igreja. Eles estiveram na origem dos piores escândalos públicos  da religião cristã, tráfico de influências, conluios obscuros, espionagem e até assassinatos. São do cardeal Paluzzo Paluzzi, séc.XVII,  as seguintes blasfémias: “Se o Papa ordena liquidar alguém na defesa da fé, faz-se isso sem fazer perguntas. Ele é a voz de Deus e nós (a Santa Aliança) somos a mão executora” (Eric Frattini) . E nós ainda nos espantamos com  o fanatismo  jihadistas na sala de redacção do Charlie Hebdo?!
Não quero maçar-vos mais com tétricas narrativas históricas. Há muita literatura nesse sentido, em especial  “Herdeiros do Pescador”, nos bastidores da morte e da sucessão papal” de John Peter Pham, ed. Europa-América.
Tudo isto para esclarecer a carga semântica que nos suscita o epíteto de “Cardeal”. Não tem um passado limpo. E não foi por acaso que Bento XVI abandonou  o Sumo Pontificado. Por muito menos acaso,  este próprio Francisco Papa compara a cúria romana a um covil de lobos --- de cuja limpeza tem-se esforçado com um denodo incomparável.
É por isso que eu imagino quanto não terá custado à sua mentalidade e ao seu temperamento aquela tão aparatosa cerimónia para nomear os seus mais directos colaboradores e assessores. Mas --- noblesse oblige --- teve de observar o protocolo. Ainda não chegou o tempo de simplificá-lo.
Teve de entregar o barrete. Não sei se sabeis que,  até 1969 (com o generalíssimo Francisco Franco e a pedido de Paulo VI) eram os soberanos dos países católicos que tinham o exclusivo de impor a biretti  na cabeça do novo cardeal que,  para o efeito, se ajoelhava diante do monarca. Ridículo. Como ridículo é dizer-se que aquele barrete significa o sangue que o seu titular está pronto a  derramar  por causa de Cristo. Um simples padre, na sua Missa Nova, (aconteceu comigo em 1962) também passava a usar um barrete idêntico,  denominado o “tricórnio”, mas de cor preta. Assim, o sangue de um jovem sacerdote era preto e o do cardeal seria vermelho…
Teve de  enfiar-lhes  um anel. E ainda com a agravante de chamar-lhe o “anel de Pedro”. Impossível, insuportável!  “Os calos são os anéis do povo trabalhador”, diz o ditado popular . Os anéis de Pedro eram os anzóis, as redes,  os remos, as rugas da dura faina do mar. Basta de teatro de marionetes!
Mais:  há dois nomes que não deviam ser embrulhados naquela cerimónia:. o de Cristo e o de Pedro. Chamem todos os outros, os espirituais, os metafísicos, os invisíveis, (Pai, Espírito Santo, etc.) mas estes dois não. Não têm nada a ver com o espectáculo mundano. Aliás, estão contra  tão sofisticada  deturpação da realidade. Porque  a sua vida assim o demonstra.
É por tudo isto  --- e muito mais ficou por dizer --- que me ponho na pele do Papa Francisco e imagino: “Que seca!” Mas no dia seguinte, “pagou-se”, isto é, desabafou, com a transparência que o distingue: “Não penseis que agora pertenceis a uma casta”.


Uma nota que me persegue e me revolta enquanto escrevo: pensar que a esta hora está o Poder Judicial, refastelando-se  à mesma mesa e a convite  do” ex-recente-futuro” defunto  Poder Político  na Quinta das Angústias. É o despudor primário. “À mulher de César…”, sabeis o resto.. Deve convidar o inquilino anfitrião para o almoço de despedida  em Lisboa, num dos salões de gala da Procuradoria Geral da República.

19.Fev.2015

Martins Júnior

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