sábado, 29 de novembro de 2014

“A MINHA PRISÃO É UM REINO” ((Gilbert Cesbron)


Embora seja amanhã o 1º Domingo do Advento, ocorre também o 241º aniversário natalício de Francisco Álvares de Nóbrega, poeta-filósofo, nascido em Machico em 30 de Novembro de 1773 no sítio dos Moinhos, hoje sítio da Graça, e morto em Lisboa, após trágico cativeiro na Cadeia do Limoeiro pela Inquisição, como referi no meu  anterior blog. Porque vejo nele o maior expoente deste concelho e um dos mais exímios sonetistas portugueses ---  sendo até cognominado de “Camões Pequeno” --- por isso, peço-lhe reverente licença para dedicar em verso esta modesta homenagem.



      Entre céu e mar e terra
      Seu berço foi

      A graça infante nascida
      Na “Graça dos Moinhos”
      Juncou de azul e sal e guerra
      Os teus caminhos

      E porque não tem pátria a Ideia
      Apátridas foram os dias intemporais
      As longas nocturnas espirais
      De luta e agonia
      Com que a ilha madrasta
      Avara e nefasta
      Te cobriu
      Desde a ribeira-rio
      Onde nasceste
      Até ao Tejo amaro
      Onde sofrido morreste

      Taumaturgo do verbo
      Da tua prisão
      Fizeste a tua e a nossa liberdade.
      Irmão de Bocage e Camões
      Quebraste os grilhões
      Onde outros algemam a Verdade

      Longe da terra e dos teus que já não tinhas
      Deixaste sereno a vida ingrata
      E sepultaste o monstro antigo
      De vis garras mesquinhas


      Hoje voltas de novo
      Belo, firme, vertical
      Bradando a céus e mar e terra
      Deste teu berço
      Canto imortal


29.Nov.14

Martins Júnior

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

MEMÓRIA QUE É UM APELO! FRANCISCO ÁLVARES DE NÓBREGA

                  “Porém, não consintais que se lastime
                   Na mesma estância,  e em confusão se esmague
                   A singela inocência a par do crime”

 
 
         Porque passam, domingo próximo, 241 anos sobre o seu nascimento, ponho na mesa do nosso convívio de hoje o último terceto da carta que, em forma de soneto, foi entregue ao “Sereníssimo Senhor D.João VI, Príncipe de Portugal”. O remetente foi um jovem, acorrentado nas masmorras do Limoeiro, às mãos da Santíssima Inquisição: Francisco Álvares de Nóbrega, conhecido entre os seus como o “Nosso Camões” e também por “Camões Pequeno”. Para quem traça estas linhas e para todos os que têm no coração a ilha da Madeira e, com maior emoção, o nome de Machico, lembrar Álvares de Nóbrega é como sentir um rio que corre nas nossas veias, sangue sempre novo a jorrar do terro e do rochedo que habitaram os nossos antanhos. É que ele nasceu aqui, ano 1773, olhou o mesmo sol que nos aquece, subiu os mesmos socalcos que nos vestem de verde, pisou o mesmo chão que nos aguenta.
         Por isso, quando chega Francisco, o “Nosso”, seca-nos a tinta na pena e trava-se-nos a força nos dedos: só dá para ver o ecrã do seu percurso num silêncio ofegante, ao seguir-lhe os passos para trabalhar no Funchal e ao transpor os umbrais do Seminário, já com vinte anos, por sugestão do Mestre de Retórica Francisco Lopes da Rocha, deão da Sé Catedral. Depois, é vê-lo enrolado no turbilhão das lutas político-ideológicas dentro da própria organização diocesana: de um lado, o bispo ultra-conservador José da Costa Torres e, do outro, os “pedreiros-livres”, os maçons, entre os quais o número dois da Diocese (o citado deão da Catedral) e muitos padres e forças vivas, não só da cidade do Funchal, mas de várias zonas rurais. Prevaleceu, embora temporariamente, a razão da força e o “Nosso“ Francisco, acusado caluniosamente de blasfémias contra a religião, foi levado, barra fora, para os cárceres da Inquisição, onde se  encontrou na mesma cela com essoutra “alma gémea” Manuel Maria Barbosa du Bocage, que fez do seu estro poético uma arma fulminante contra a ditadura vigente. Aos trinta e três anos, doente, quase leproso em casa de um amigo e benfeitor na rua S.João Nepomuceno, à Estrela,  despediu-se da vida, rodeado dos seus escritos. Até hoje, desconhece-se o cemitério onde foi sepulto. Só a data:: 1806.
         Maltratado em vida, esquecido na morte! Votado ao ostracismo, o regime queimou-lhe os livros e apagou-o da memória dos vivos. Só a partir de 1954, a Câmara Municipal mandou esculpir  no Miradouro de seu nome o soneto dedicado “À Pátria do Autor”, assim chamava o próprio  ao seu Machico. Mais tarde, Alberto Figueira Gomes editou as “Rimas” que ainda sobrevieram e João França dedicou-lhe o drama em Um Acto “Camões Pequeno”. Desde 1960  e, com maior empenho e liberdade, após Abril de 74 do século XX, passou-se a levantar bem alto a Mensagem de Álvares de Nóbrega  ininterruptamente em 30 de Novembro de casa ano (e muito me conforta o ter contribuido para tal), culminando todo este dever patriótico com a criação, em 2005, da associação cultural denominada “EFAN-Estudos Nobricenses”, a qual deu à estampa as “Actas do Bicentenário, 2006”, (uma colectânea de valiosos trabalhos apresentados por investigadores da Madeira e do Continente) e o “Processo da Inquisição nº 15.764”, da historiadora dra. Ivone Correia Alves.  Mais recente,  em publicação autónoma,  o estudo do dr.João Luís Freire e  a estátua de Francisco Álvares de Nóbrega, do escultor Luís Paixão, no Solar do Ribeirinho, completam este feixe luminoso na ara do nosso conterrâneo.
         Domingo próximo, 30 de Novembro, 17 horas , a Junta de Freguesia de Machico comemorará o 241º aniversário do nascimento do nosso poeta-filósofo e, conjuntamente, a “EFAN-Estudos Nobricenses” editará a aludida  peça dramática  “Camões Pequeno” (até agora inédita) do falecido polígrafo madeirense João França.
Ler e conhecer Francisco Álvares de Nóbrega  é mais importante que homenageá-lo. Tenho-o dito e redito: Os homens verdadeiramente grandes não esperam nem  precisam das nossas homenagens, nós é que  precisamos trazê-los para junto de nós, bem à nossa frente, para que o seu brilho nos arraste para aqueles horizontes que, no seu tempo, vislumbraram e ardentemente desejaram para nós, os vindouros.
Fazer da nossa vida uma luta, da nossa luta um dever, do nosso dever um prazer para tornar mais respirável a atmosfera e mais habitável o planeta --- seja pelo estudo, pelo trabalho braçal, pela poesia, pela música, por toda a  arte, pelo ensino, pela terra e pelo mar --- eis a grande Mensagem, a Única Homenagem ao cognominado, embora, de “Pequeno”, será sempre o “Nosso Camões”.

27.Nov.14

Martins Júnior

terça-feira, 25 de novembro de 2014

DESCUBRA AS DIFERENÇAS

 

Desde logo, cá vai um pré-aviso: qualquer semelhança é pura coincidência. Para desanuviar o ambiente carregado destas últimas semanas, polvilhadas e encharcadas de comentadores e analistas, tipo “gato escondido com rabo de fora”, venho propor-vos um jogo, em forma de charada, para no fim chegarmos à “moral da história” : saberá algum de vós ligar ou desligar os caracteres deste título “VOZ DA MADEIRA”?... Quem descobrir merece um prémio. E que prémio!!! A sabedoria da história, o guião seguro para saber distinguir entre a aparência e a realidade. Com a minha provecta idade, confesso que só o descobri nos arquivos locais e regionais, a propósito da pesquisa que ando a fazer sobre os conteúdos desse pomposo folclore que deu pelo nome de “Os 500 anos da Diocese”. Procurava eu os hipotéticos “400 anos” (1914) em diversos documentos da época, quando me cai debaixo dos olhos o título “VOZ DA MADEIRA”, mensário publicado entre 1901 e 1927. Disse logo com os meus botões: “Que seca! Só me faltava esta, começar por aturar, já em 1914, o jornal do regime!”

Para os mais novos, talvez não saibam, mas a minha geração sabe que “VOZ DA MADEIRA” cheira ao bolor do fascismo, aos códigos da Inquisição, como veremos mais abaixo. De imediato, vi que não poderia corresponder ao meu palpite, pois seria um grosseiro anacronismo. Então, que era e quem representava essa folha informativa e, sobretudo, eminentemente formativa? Nem mais nem menos que o órgão oficial da Igreja Metodista (Luterana) da Madeira, uma organização religiosa, dirigida por ingleses protestantes radicados na ilha. Devo dizer que fiquei positivamente pasmado com os conteúdos, tanto sobre o debate religioso, como na área social e cultural, com escolas, assistência médica, educação cívica para o povo rural. Dois polos dinâmicos da Igreja Metodista estavam implantados no Santo da Serra e em Machico, sítio da Ribeira Grande e Maroços. Era o que hoje se pode chamar uma publicação progressista, reivindicativa, servindo de exemplo a necessidade de iluminação pública (artesanal) e a construção de fontenários de água potável para a população de Machico, exigidos à Câmara Municipal, em 1926. À margem do texto, repare-se que datam de 1927-28-29 certos fontenários, artisticamente concebidos, que permaneceram até aos dias de hoje.
Eis a primeira versão da “VOZ DA MADEIRA”, para mim, um curioso e precioso achado, pelo seu conteúdo, mas especialmente porque me levou a compará-la com a versão do meu tempo.
E que versão era esta, iniciada em 1953 e extinta 1974? Pela data da sua extinção, talvez cheguemos lá. Esta “moderna” edição da “VOZ DA MADEIRA” era, imaginem, o órgão oficial do regime salazarista, dirigido no mais aceso da agressão fascista, pelo Dr. Agostinho Cardoso, presidente representante da União Nacional (o Partido Único) e onde repetidamente escrevia seu sobrinho, o ex-futuro inquilino da Quinta Vigia, tecendo glórias a Salazar e Caetano, incentivando os jovens soldados a combaterem na guerra colonial, por amor à Pátria (mas a pátria do dito escriba ficou-se pela secretaria do quartel general na Madeira). Chegou o “25 de Abril” e a “VOZ DA MADEIRA” fascista morreu de susto.

Para que servem estas linhas?... Certamente já está tudo esclarecido: Cuidado com as aparências, com as apropriações falaciosas. Não basta o cabeçalho de um jornal para classifica-lo: é preciso saber o seu director, o seu proprietário, a sua tendência oculta, mesmo que se autoproclame independente. E quem diz de um jornal, diz-se de tudo o mais. Para acabar, moral da história: “Nem tudo o que luz é ouro”.

Aproveito para desejar o melhor sucesso à novíssima “VOZ DA MADEIRA”, edição on-line.


25.Nov.14
Martins Júnior

domingo, 23 de novembro de 2014

ACIMA A DEMOCRACIA ABAIXO A "MONARQUIA" ROMANA


Neste fim de tarde da grande gala da velha instituição monárquica da Igreja Católica  --- a Festa de Cristo-Rei --- prometi passar à segunda parte  do filme: a que estirpe pertence este rei-Cristo? Pois, quanto à primeira parte,  já ficou razoavelmente descrita a megalomania do Papado Romano, usurpador dos dois poderes, o temporal e o espiritual, que, por via da ignorância e submissão dos crentes (e a que se  associou a aliança perversa entre Roma e os imperadores de então) chegou ao extremo do Tratado de Tordesilhas, em 1494, em que o Papa, “delegado de Cristo e seu Vigário na terra” dividiu as colónias descobertas e a descobrir entre Portugal e Espanha. A tanto chegou a entronização de uma absurdo, “em nome Cristo, senhorio dos céus e da terra”. É caso para confirmar-se que a realidade ultrapassou a ficção.
Qualquer observador, minimamente isento, ao compulsar os textos hoje lidos na liturgia, depressa verificará a falsificação, a meu ver criminosa, da documentação original, compulsivamente merecedora de uma séria condenação judicial. E porquê?
Desde logo, pela declaração formal de J:Cristo diante do Procurador Pôncio Pilatos: “Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo”.  Como justificam  e com que paz interior ocupam bispos e cardeais sumptuosos palacetes? Que o façam em nome pessoal ou de  heranças familiares, tudo muito bem.;mas em nome J:Cristo?  “As raposas têm as suas tocas e as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Bem andou  Hélder da Câmara que, em Olinda e Recife, entregou o Paço arquiepiscopal para obras de alcance social (jovens, idosos, crianças) e foi viver para uma casa rasteira numa das ruas da cidade. O mesmo fez Jorge Bergoglio em Buenos Aires.
Seria um extenso relatório enumerar a contradição entre o autêntico rei-Cristo e o abuso despudorado com que se apresentam os eclesiásticos, sobretudo os ambiciosos das sedes episcopais, como seus intrusos representantes, porque  sem legítima procuração para tal.
O texto de hoje identifica o passaporte do exacto procurador do rei-Cristo: Aquele que acompanha os pobres, os famintos, os doentes, os sem-abrigo e até os presos. Mas --- ninguém se iluda --- não é pelo gosto mórbido da permanecer nos “ghetos” da miséria, mas para tirá-los de lá, despregá-los da cruz, matar-lhes a fome e a sede, restituir-lhes a saúde e, acima de tudo, transfigurar a sua condição em promoção da vida e da alegria que lhes foram amputadas pelos poderosos, aliados aos auto-proclamados gurus espirituais.
Na mesma medida, seria imenso o cortejo de tantos homens e mulheres que põem convictamente os seus pés nas pegadas deste rei-Cristo. Mas esses são os que a Instituição monárquica atira para a valeta do caminho.
Permitam-me trazer ao nosso convívio o ex-militar, investigador do mundo oriental, padre Charles de Foucauld, assassinado no Saará por muçulmanos tuaregues em 1916.  Porque me conforta recordar momentos decisivos no meu itinerário existencial, rendo homenagem ao Prof. Dr. Henri Hoestlandt, da Universidade de Lille, quando o acompanhei nas pesquisas científicas dos isópodes na Madeira, já lá vão quse  sessenta anos. Ofereceu-me a biografia de Foucauld, escrita por René Voillume, que mais tarde fundou a associação “Les Petits  Frères de Jesus”. A dedicatória marcou-me:”Pour une découverture du Christ” (Para uma descoberta de Cristo). Impressionou-me vivamente o ideário do ex-oficial do exército francês e ainda mais o programa da mencionada associação, maravilhosamente descrita pelo historiador Daniel Rops: “A fraternidade dos Pequenos Irmãos de Jesus vê  nele, não tanto o taumaturgo milagreiro, nem a Segunda Pessoa da SS. Trindade, nem Aquele que virá julgar os vivos e os mortos, mas o companheiro humilde,  Aquele que é mais um entre a multidão, operário no meio dos operários…”
Cada vez mais me convenço que não é pela micro-interpretação da religião ou de uma casuística pontual que se chega à verdade da realeza do nosso J:Cristo, mas sim pela visão-macro, multímoda e holística da sua personalidade  e do programa “escandalosamente” inovador, ao ponto de identificar a Divindade nos humilhados e ofendidos da história.
É um percurso, por vezes espinhoso, mas de uma luminosa conquista libertadora!

23.Nov.14
Martins Júnior

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

UMA MONARQUIA ÓRFÃ DE FILHOS MAS ÁVIDA DE HERDEIROS


Aproximando-se a grande gala de domingo  próximo, o Dia de Cristo-Rei, permitir-me-eis a apresentação de um documentário em duas fases: Hoje, o filme do que há;  depois de amanhã o filme que devia haver.
Ora o que há dá-nos o seguinte resultado: o povo católico ( e quase todos os outros) é arraigadamente monárquico: quer um rei em seu trono,  um dominador abraçando o seu império, um juiz de toga toda ouro e púrpura, mas de bastão em punho. E por isso levanta estátuas portentosas em plataformas cimeiras, tais como  o do Corcovado no Brasil,  o de Almada em Lisboa e, até no exíguo terro da ilha, o Cristo-Rei do Garajau. Nos Açores, embora lacrimoso, o Senhor Santo Rei Cristo assoma triunfante, carregando aos ombros um peso de ouro maior que a própria cruz. O povo foi gerado com os genes sedentos de um Rei. Era o sonho da civilização judaica: um Messias que derrubasse os povos circunvizinhos e ficasse assentado na cúpula do universo.
Dois poderes fizeram a vontade aos crentes: o imperador
Constantino Magno, a partir do ano 313, e o Papa de Roma. Como nos acordos perversos que hoje fazem os partidos opostos, assim começou o cortejo. No século V, houve um Papa, Gelásio I. africano (sim, a Igreja já teve um Papa negro) definiu os dois poderes com a teoria da duas espadas: o poder temporal e o poder espiritual.
E quando os dois, porventura, entrassem em litígio, quem tinha o direito de ficar por cima era o poder espiritual. Dito e feito. Por coincidência, o império romano caíu às mãos dos “bárbaros”, assim classificados pelos imperialistas, ficando então  o  Papa senhor dos dois poderes, o temporal e o espiritual. E o povo achou que assim é que ficava bem. E como, para formatar uma geração e muitas gerações,  não há engenharia mais eficaz que a força de uma crença, construiu-se o mais alto torreão e aí se fez o trono super-soberano da Igreja: os palácios, o exército, desde o magala tonsurado até os sargentos-padres. os oficiais-bispos, os embaixadores-núncios e os príncipes-cardeais. Teceram-se as tearas triplas para o Sumo Pontífice, suas-santidades, as longas caudas vermelhas para os cardeais, suas eminências, as faixas vermelhas para os bispos grávidos de mundana vaidade e adequada ignorância, e até aos pés largos dos cónegos foram enfiadas venerandas meias vermelhas. Tudo hierarquicamente, impecavelmente, bem estruturado e banhado com a hipocrisia do divino e a complacência embasbacada dos crentes.
E enquanto os detentores do poder espiritual selavam contratos de partilhas dos bens terrenos e tácticas inconfessáveis para subir na carreira eclesiástica, o povo ajoelhava-se, à passagem, para beijar o anel de noivado entre os pontífices e a esposa de Cristo, a Igreja.
Assim se apregoava, assim se cumpria. Quem ousasse despir todas essas proeminências falsas para fazer surgir a verdadeira face do autêntico Rei-Cristo, tinha neste mundo o aquecimento das fogueiras da Inquisição como treino para o interminável vulcão do inferno, no outro.
Por mais ridículo que pareça, este foi o filme de vinte séculos de construção do Sacro Império da Religião, à pala do Cristo, cuja realeza deixarei para depois de amanhã.
Enfim, uma gratuita monarquia de reis solteiros e sem filhos, mas desejosos, ávidos de abocanhar os melhores podiuns no mundo.
Até que um dia, apareceu um arcanjo em traje de homem que traz na mão a coragem de derrubar os poderosos dos seus tronos. Esse dia já estamos a vivè-lo com o actual inquilino do Vaticano, o Papa Francisco.
Até domingo, se lá chegarmos!
   

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A MALDIÇÃO DA POLÍTICA “A mais velha profissão do mundo”


Nem é  comentário nem apreciação nem crítica o que me move neste nosso convívio de fim-do-dia. Porque para  ocupar-se do currículo quotidiano da praça pública,  há analistas de sobejo,  comentadores profissionais, enfim, os boletineiros de serviço diário. Hoje é um desabafo, um misto de indignação e de náusea perante este nó de víboras em que nos trazem enredados os protagonistas da nação e das nações, ébrios de poder e de caça limpa. Refiro-me aos escândalos que todos os dias conspurcam os nossos televisores e infestam de ar pútrido as paredes da nossa casa. Citá-los põe-me a cabeça em cacos:  são os Bárcenas, os Pujol aqui ao lado; são os angolanos, agora os timorenses, os chineses, e  aqui na vizinhança os BES e os BESAS,  os SEFs, os garantes das escrituras notariais, para já não falar nesta cirurgia plástica, à moda caseira, que deu pelo nome de Cuba Libre à nossa porta. Mas que maldição é esta que ataca todos os que caem no labirinto da política?!... Todos não, mas quase sempre os mesmos, da mesma raça. E vejo isto com tanta mais abjecção quanto o saber que também  andei por perto dessas raias de maldição.  Parece  que entrar para a política é sinónimo de entrar para a prostituição, tal como no tráfego de seres humanos onde os proxenetas angariam jovens e adolescentes, prometem-lhes bons empregos em tais ou quais cidades e depois, atónitas, vêem-se mergulhadas no pântano do açougue degradante da mais vil condição feminina.
É o que se tem visto: gente proba, com provas dadas, técnicos competentes, isentos e seguros,  por quem antes se era capaz de pôr as mãos no fogo e, depois, desabam as torrentes e vê-se-lhes a mais repugnante nudez de carácter.
Penso em Dante Alighieri quando no frontispício do Inferno (da sua “Divina Comédia”) coloca o terrífico cartaz aos que lá chegam: ”Deixai fora toda a esperança,  ó vós que entrais!”. Parece que a todos os candidatos a cargos públicos ou de confiança política se impõe idêntico anátema: Deixai fora toda a dignidade, trocai de roupa e de alma, calcai aos pés o brio da honestidade que os vossos pais vos ensinaram.
É a vertigem do abismo da corrupção, a que eles chamam a atracção pela soberania, perante as quais ficam drogados e cegos, capazes de todos os truques, de todas as manobras, qual delas a mais sofisticada. Nem ao menos  pensam que têm amigos dignos, filhos e netos que no dia seguinte são marcados e enxovalhados pelos colegas da mesma escola!
Maldição da política!
Mas o zé-povo ( o zé-povo somos nós!) também tem culpa. Para alcançar vantagens a qualquer preço não hesita em subornar o polícia, o cobrador de impostos, o presidente e, se puder, o juiz. E na escala inversa o zé-povo também se paga:  é o porteiro que dá prioridade a quem não a tem, é o amanuense, o oficial de diligências que, a troco de uma nota, puxa o processo para  cima da mesa,  é o contínuo que imita o secretário e também espera a sua garrafa de whisky. É a  maldição que se faz enguia subtil  e percorre as veias do circuito hierárquico, desde o marechal ao soldado raso, desde o Papa (menos o Francisco) até ao sacristão.
Sei do que falo e lembro o meu primeiro Natal como  presidente do município:  quinze dias antes da “festa”, confrontei-me com uma bem alinhada brigada do reumático que subia a escadaria da Câmara, com sacos e mais sacos: “Sr. presidente, isto é o meu patrão que lhe manda as boas-festas”.  “Tira-me esse lixo daí, desaparece”, era a minha resposta, enquanto via o formigueiro descer escada abaixo, surpreendido e envergonhado. “Mas sempre foi assim todos os anos”, desculpavam-se alguns. Afinal, os portadores não tinham culpa, eram mandados.
O que se tem visto nos noticiários  revolta, indigna, enoja. Por vezes apetece cambiar o ditado que se designa pela “mais velha profissão da humanidade”. E, pelo que se vê, não estaria fora do risco quem dissesse que essa profissão é a política que desfila diante dos nossos olhos. Até nos próprios jotas que, calculistas e serventuários carreiristas, se tornam aprendizes da mais antiga profissão.
Desculpem este desabafo. Mas não suporto mais.

N.B. -- Uma saudação calorosa aos dois funcionários da limpeza da Póvoa de Varzim que, tendo achado na recolha do lixo uma carteira com 4.500 euros, foram entrega-la à Câmara Municipal para devolvê-la ao seu dono.
Estes, sim, é que merecem pertencer à estirpe dos verdadeiros políticos.

19.Nov.14

Martins Júnior

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

E DEPOIS DOS 500 ANOS??


Dando cumprimento ao mandato que me impus a mim próprio de estar presente em cada dia ímpar, reservei este dia 17 para evocar aquele que foi propagandeado como o magno monumento histórico da Madeira: os “500 anos da Diocese” . Precisamente porque passam hoje dois meses sobre o 17 de Setembro,  a cúpula que coroou tamanha e narcisista efeméride.
       Arrastado durante três anos pelas ruelas do devocionismo primário caracterizador da condução católica deste arquipélago, a sua eficácia veio preventivamente retratada nas barbas brancas daquele enorme poster exibido no alçado principal de todas as igrejas e capelas da ilha. A figura de “Pai Eterno” encalhado no estreito charco dos despojos de outrora, cheirando a naftalina colorida.
       Se houve interessados que ardorosamente esperaram por este congresso, fui eu um dos primeiros, sobretudo desde aquele domingo de Março em que, na reitoria da Uma, o Prof.Dr. José Pedro Paiva, Director da Faculdade Letras da Universidade de Coimbra e, no caso, membro da Comissão Científica do dito congresso,  definiu, entre outros, três critérios para a elaboração de um estudo sério e credível: o congresso tem de ser transparente, não clerical e não apologético.
       Entretanto, no decurso das sessões, segui avidamente a exposição do mesmo catedrático focalizado no regime de nomeação dos bispos portugueses entre 1514 e 1828, ficando bem claro que quem tinha a jurisdição material, o poder, de nomear os prelados das dioceses era o monarca, cabendo ao Vaticano tão-só a nomeação formal. No período de formulação de perguntas ouviu-se uma jovem interpelar o orador para que informasse o auditório sobre o dito regime no pós-1828 até ao século XX. A resposta, sem resposta, limitou-se à afirmação de que a sua tese naquele congresso estacionava no primeiro quartel do século XVIII. Idêntico procedimento veio a verificar-se com outros oradores, destacando-se a acurada prestação do Prof. Dr. Nélson Veríssimo.
       Voltarei a este tema em posteriores diálogos com quem tiver gosto em confraternizar comigo. Apenas detenho-me hoje em questionar o sublinhado do anúncio do congresso que repetia exaustivamente o olhar para o passado, ponderar o presente e perspectivar linhas de pastoral para o futuro. Mas o que se viu foi o tirar dos armários figurinos mumificados,  pergaminhos de fino papiro e longínquos ouropéis com que se adorna a diocese, evitando sempre aproximar-se dos nossos dias, excepto naquilo que porventura envolvesse o panegírico, o apologético. Em muitas intervenções quis-me parecer que estávamos a comemorar os 400 anos da diocese.
       Nesta primeira abordagem, faço minhas as preocupações que o Pe. Dr. Rui Osório resumiu, já faz tempo, no Jornal de Notícias do Porto, a propósito do Congresso  da Juventude em Barcelona, no qual pomposamente se anunciou a participação de 300 jovens portugueses: “E o que ficou de tão propalada participação?”
Suponho que, passando hoje dois meses, na mente de muitos madeirenses perpassa a mesma incógnita: ”O que ficará além do congresso?”.

17.Nov.14
Martins Júnior

sábado, 15 de novembro de 2014

RETRATO DE MULHER


Desconheço a identidade ou a apetência ideo-teológica das pessoas que comigo conversam, dia sim, dia não. E por isso esclareço que entre sábado e domingo, dedico sempre o “dia ímpar” aos textos bíblicos propostos no calendário litúrgico respectivo. Para hoje e amanhã vou confraternizar convosco erguendo um estranho brinde de simpatia ao escritor que redigiu uma das mais vigorosas páginas do Antigo Testamento em homenagem à Mulher. Sublinho “estranho brinde” porque, como todos sabemos, a Mulher foi depreciada, vilipendiada, diabolizada mesmo, ao longo dos mil anos em que foi escrita a Bíblia. Toca as raias do ridículo o câmbio social de uma mulher: valia apenas uma costela do homem. Assim está decretado no Primeiro Livro, o Génesis, de Moisés. (Gen.2,21) E Paulo Apóstolo, (embora digam alguns exegetas que tal escrito não saiu da mão de Paulo) lá se preceitua que “às mulheres nas assembleias não lhes é permitido falar e se querem aprender alguma coisa perguntem aos seus maridos, porque não é decente que a mulher fale na igreja” (I Cor.14, 35-36).
Mas o texto de hoje é outro, visceralmente oposto. Leiam, se tiverem oportunidade, o Livro dos Provérbios, cap.31,10,sgs.. E vejam a radiografia e o pedestal que o seu autor, desconhecido, reconhece na Mulher: dinâmica, autónoma na organização da casa, da economia, é a primeira a madrugar, distribui tarefas, luta pela qualidade de vida  dos filhos e dos assalariados, o seu conteúdo funcional ultrapassa as quatro paredes domésticas e avança sem complexos a fazer contratos de compra e venda   com os agentes comerciais itinerantes, ao mesmo tempo que se revela  assumidamente ciosa  da conquista de um estatuto social para o seu homem, sentado entre os senadores da  nação.. Dela poder-se-ia dizer que atrás de um Grande Homem há sempre uma Grande Mulher. Atrás, não. Ao lado, ex aequo .  Ler esta página significa alcançar o “Prazer do Texto” , parafraseando Roland Barthes..
Transcorridos séculos, a evolução do pensamento e a luta no “feminino” vêm confirmar as expectativas do autor dos “Provérbios”. Saúda-se a avalanche crescente do auspicioso  tsunami chamado Mulher no tablado sócio-cultural e económico do mundo contemporâneo ocidental, luta essa que, mesmo à custa de massacradas vítimas, pensemos em Malala, vai rasgando brechas na maniqueísta civilização oriental. Segundo Myriam Mercy, “em África e na Índia as mulheres trabalham como condenadas”. A última edição do recém-criado semanário Le Un-1 traz uma bem escrutinada síntese, a nível global, sobre a poderosa vantagem  que a Mulher conquistou em sectores outrora monopolizados  pelo estatuto do Homem  Vale a pena lê-lo.
Não é, porém, a velha questão denominada “guerra de géneros” que motivou esta nota de fim de semana, mas tão só captar que nem sempre foi pacificamente aceite a tradição judaica da subalternização da Mulher. E este é um dado novo, claro e galvanizador. Por mais estranho que pareça,  as mulheres mais formatadas pela educação cristã e católica são, elas mesmas, as mais passivas e até hostis ao apelo genético de criadoras, lado lado com o Homem, de um mundo novo. Gostam da submissão., uma atitude quantas vezes mais cómoda, porque menos comprometedora. Parece-lhes um abuso, um pecado, tomar a dianteira na iniciativa e na acção. Aqui, temos de ressalvar a Mulher-protótipo do Livro dos Provérbios, temos de alcandorar Jeanne d’Arc, Teresa de Ávila e tantas outras anónimas dos tempos modernos, investigadoras, sindicalistas, pouco se importando que as alcunhem de revolucionárias.
Focalizando a nossa análise sobre os dois textos selecionados pelo coordenador litúrgico deste domingo, conclui-se que o poder transformador da sociedade é conferido, em  proporções iguais, à dupla  Homem/Mulher, cada qual fazendo reproduzir os talentos, as oportunidades, as capacidades dentro da sua  idiossincracia original. Mais se descortina, à evidência, que o Autor e Julgador dos mortais não se deixa comover com reverentes genuflexões ou votos pios. Ele quer  resultados, produção, avanços, que signifiquem vitórias efectivas na construção da História. E é por aí que seremos julgados.
   
15.Nov.14

Martins Júnior

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

“ISTO SÓ À BOMBA!” Antídoto contra a violência: vigilância



Na sequência do 9 de Novembro e quando se lhe batem efusivas palmas pelos seus 25 anos, que também são nossos, três episódios vieram  e vêm todos os dias ensombrar-me a alvorada nascente desse redivivo Dia D.  Vou compartilhá-los consigo, pois, estou certo, idêntica perturbação ronda à vossa porta:
O primeiro: na mais recente edição do Courrier Internacional (6-12 Nov.) a expressiva imagem de capa traz por título este, que não é agoiro, mas constatação da realidade: “Cinquante murs à abattre”. E logo descreve os mais notórios cinquenta muros da vergonha espalhados pelo mundo, desde Jerusalém a Belfast, desde o México ao  Bangladesh.
O segundo: a vertigem avassaladora de jovens estrangeiros, até europeus nossos, portugueses nossos, que se entregam voluntariamente à orgia sanguinária do Estado Islâmico.
O terceiro e mais próximo de nós, deixo para o fim.
 Venha alguém que nos explique esta contradição, esta contagiante granada explosiva que abala o planeta e que cria fantasmas (oxalá sejam só fantasmas) na mente e na pena dos analistas que já falam na terceira guerra mundial.
Se me permitem,  vejo a olho-nú, três focos de onde saem os fantasmas: o sono, a impunidade, a imunidade. E outra vez o sono. Quando acordamos já é tarde, a casa já está em chamas. Ao dizer sono digo  inércia,  passividade, é o “deixa-andar que isso não é comigo”. E aqui começa o vírus, aqui se instala a legionela endémica, que se faz desespero, pólvora e paiol pronto a rebentar. Do ventre da inércia colectiva sai a impunidade que alimenta a antropofagia corruptora e corrompida que se passeia de fato e gravata ,  de hissope e água benta e a quem nós, voluntários servos da gleba, cortejamos, veneramos, incensamos e até a colocamos no intocável trono da imunidade dos bràmanes. E, depois de tudo bem urdido, bem armadilhado, bem organizado, voltamos ao sono do “assim é que está bem”, o governo  governa e o povo obedece. Quando acordamos, “Aqui d’El Rei”, já não há armas para neutralizar o monstro que criámos, o cancro que deixámos minar todo o corpo social: são os banqueiros a quem confiámos as poupanças, são os governantes a quem (por acção ou omissão) demos o voto, são os juízes que absolvem criminosos e condenam inocentes, são os pontífices e eclesiásticos que nos roubam a terra e nos oferecem o céu. E calamo-nos todos perante esta fogueira que ateámos com as nossas próprias mãos, ao ponto de insultarmos os vigilantes que, à nossa beira, gritavam “fogo, aí vem fogo”. E quando as chamas tomam conta de nós, desesperamos, vociferamos, somos capazes de tudo, de pegar na caçadeira, de arrancar os olhos, de nos alistarmos, como cegos erráticos, num qualquer exército, islâmico ou curdo, sírio ou sunita. Mas já tarde. Quem nos salvará? Ficamos à espera que os correligionários coveiros da paz briguem uns com os outros, tal como aguardamos que o baluarte da  Al-Qaeda Ayman al-Zawahiri e o califa Abu Bakr al-Baghdadi se destruam mutuamente.
Tudo isto se passa entre nós, quer no macro quer no micro-cosmos, na cave, no rés-do-chão, do primeiro ao último piso do planeta que habitamos. Aqui na Madeira também. Há poucos dias --- e agora conto o terceiro episódio --- ao sair de uma visita ao Hospital encontro um septuagenário, com um perspicaz brilho nos olhos, que desabafa a sua pobre condição familiar, casos de injustiça social e remata, exasperado: ”Isto só vai à bomba”.
Tocou-me intimamente a respiração arfante e o corte da sua voz, o que motivou este meu “dia ímpar”. Tentei explicar por outras palavras o que acabo de escrever e acrescentei que o povo tem culpa de muita coisa. Deixamos que o caçador faça de nós a sua macia albarda. Hitler começou como simples cabo promovido a sargento, depois, com a armadilha do social-nacionalismo (traduza-se em madeirense vernáculo “regional-autonomismo) foi ovacionado como o salvador da pátria, o pai e protector do povo.
E deu no facínora mais horrendo da história.
Só há um código vencedor, sem armas nem sangue: Vigilância sobre todos os poderes: legislativo, executivo, judicial, financeiro, religioso.
A cada hora, a nossa voz.
 A CADA INSTANTE, A NOSSA  ACÇÃO.

13.Nov.14
Martins Júnior

terça-feira, 11 de novembro de 2014

4x25= SONHO PERFEITO

7.XI.89

Ao Telmo José, cujo nascimento em 7,
prenunciou o 9 de Novembro de 1989

                                               
foi nesse berço
redondo e na plena e pura
e mais que  perfeita  quadratura
que reveste  a vida sempre renascida: 
o menino  nasceu  e  o   muro negro buliu
abriu os olhos logo estremeceu o férreo muro
deitou o  primeiro grito e  o muro-vergonha caíu
marcou-te  então os passos com a pressa do futuro
                       
e hoje ---   nas  25  viragens da viagem  ---- a vida
vives  ----  nos  25  noves-de-novembro --- o berço
e tens ------nos  25  lusos cravos  rubros -- de avós
o sonho --- nos  25  sinos-de-dezembro –--  manhã

outras muralhas voltarão   mais duras  que o betão
das armas letais abutres  até dos sacros capitais
cercar-te-ão a ti aos viventes e aos vindouros
chegará então aquela hora a dos lutadores
e quando o muro  invadir o teu espaço
afoga-o na raiz  lança alma e braço
tens no berço sol e quadratura  
a tua armadura             
                                                   


11.Nov.14
Martins Júnior         

domingo, 9 de novembro de 2014

HOJE E SEMPRE DIA DE ORÇAMENTO PARTICIPATIVO PESSOAL E INTRANSMISSÍVEL


É de orçamento que hoje vamos conversar, desde o nascer ao morrer deste dia ímpar. Não de orçamento municipal, regional ou nacional, muito menos europeu. Talvez --- e até está na moda --- se possa classificá-lo de orçamento participativo, super-participativo. Logo, hoje, domingo?...Estou a ver e ouvir o espanto de quem comigo conversa. E eu confirmo: é isso mesmo! Trata-se do nosso orçamento, o de cada um, o orçamento da vida. Porque, hoje é domingo e porque na trajectória sequencial destes entretenimentos procuro alinhar o pensamento pela proposta do texto bíblico que leio aos participantes da mesma mesa no templo da Ribeira Seca, a minha proposta tem a ver com o estar vigilante e, daí, preparado para entrar na última e inalienável, intransmissível reforma da vida: a morte. Optimista e positivo, o nosso J:Cristo conta, a propósito, aquela quase hilariante cena das dez raparigas solteiras que, na tradição judaica, foram especiosamente seleccionadas para a guarda de honra dos noivos, à meia-noite. Cinco, as prudentes, acenderam as lanternas da praxe e preveniram-se levando uma reserva de azeite, para qualquer avaria superveniente. As outras cinco, mais divertidas, mas boas moças (eram todas virgens, diz o texto) não deitaram contas (fizeram mal o orçamento) não levaram reserva de combustível, as lanternas apagaram-se, ainda correram à cidade para comprá-lo, entretanto chegam os noivos, a porta fechou-se. E quando chegaram, ninguém lhes abriu a porta. Moral da história, rematou o Mestre: “Estai preparados porque não sabeis qual o vosso dia e qual a vossa hora”.
Estas palavras, lembro-me bem, foram espremidas até ao tutano pelos pregadores do povo para meter medo às pessoas mais crédulas que viviam em trauma constante e, em desesperada  urgência, lá vinha a “Emir eclesiástica”, à pressa, com óleos e unguentos “dar a Extrema-Unção” --- já o moribundo, quantas vezes inconsciente, tinha o corpo e o espírito voltados para o outro lado.    
Porque, quando jovem, também assim me formataram, hoje  considero criminosos (talvez, coitados, também eles inconscientes) os promotores desta psicose traumática perante o Além. “O que vai ser de mim no outro mundo???!!!”. Os pontos de interrogação e exclamação significam o pavor que cheguei a ver nos olhos angustiados de muitos doentes idosos.
E, por isso, fui descobrindo antídotos e pistas de saúde física e mental para este desassossego inútil. Em primeira mão, deixar de fazer da morte um tenebroso tabu. Não vale a pena perder tempo com ela, porque ela não se esquece de nós. Quando vier que venha. Ninguém descobrirá jamais a geografia do além-túmulo. Em segunda prospecção, concluí que  só morre bem quem vive bem, não no sentido epicurista do termo, mas na realização do nosso orçamento existencial. Neste orçamento temos por receita as nossas capacidades, a saúde, a energia, o talento, seja ele intelectual ou braçal, enfim, todo o capital humano, legado hereditariamente ou adquirido no exercício quotidiano. A despesa, essa realiza-se-a no nosso posto de trabalho, seja ele qual for: são todos dignos os serviços prestados à causa comum-. Tive, em adolescente, um professor. capitão do exército, que morreu diante de nós, repentinamente, na aula de matemática. Foi um pavor. “Sem confissão nem extrema-unção”, comentávamos, transidos de medo. Mais tarde percebi que essa foi uma morte  santa, heróica, perfeita. No seu posto. Ocupar o nosso posto, não tanto na mira de alcançar uma gorda benesse no Além, nem mesmo por místicas sublimações. Eça de Queiroz retrata magistralmente esta postura no diálogo entre o velho sábio agnóstico Afonso da Maia e o abade Bonifácio acerca da educação do netinho Carlos. Mais recentemente, Manuel Vicent, na última coluna da edição de cada domingo, no El País, enaltece a estatura moral e profissional dos médicos e enfermeiros que, estoicamente, desinteressadamente, morreram vítimas da luta contra o ébola e considera-os superiores ao esforço, também heróico, dos missionários que o fizeram apenas por inspiração religiosa ou para ganhar uma recompensa divina.
Saber realizar o nosso orçamento participativo enquanto inquilinos do planeta, do continente, da cidade ou da aldeia  que habitamos --- sabê-lo e senti-lo --- eis a chave do sucesso e a arte de manter sempre aceso o facho luminoso da vida, para derrubar todas as muralhas do medo, tal como os homens e mulheres que, há 25 anos, varreram, a pulso e a golpes de montante, o vergonhoso muro de Berlim.  


9.Nov.14

Martins Júnior

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

EM QUE TERÁ PENSADO BRITTANY MAYNARD ? E TU TAMBÉM?



                            Quanto vale o sofrimento?
                            Quanto pesa uma vida?
                            Quanto mede uma Pessoa?


Este corredor electrónico que nos oferece a tecnologia, considero-o um momento privilegiado para deambularmos de forma intimista, de mão dada,  pelas mais diversas paisagens do mundo e da vida. E para nos demorarmos onde acharmos útil e oportuno, seguindo a inspiração de Sebastião da Gama: “O poeta em tudo se demora”.
Pois bem, debruçámo-nos anteontem sobre aquele instante, a um tempo fatídico e heróico, protagonizado por essa jovem sedenta de vida, Brittany Maynard, em Portland, Estado do Oregon. Como ela, queremos a vida e não nos  deixamos paralisar pela eventual contemplação dos nossos fins. No entanto, o suicídio assistido que escolheu põe-nos problemas que todos os dias batem à nossa porta e que se apresentam como oponentes à decisão que ela tomou:   
1.:
Então o sofrimento não tem valor? E por que razão se apresenta como exemplar o caso de Jesus que sofreu tanto?

É este um dos estereótipos que têm modelado a mentalidade cristã e ocidental. Mas não será bem assim. O sofrimento, a dor, não são valores autónomos. Nem sempre Alfred de Musset terá razão quando escreveu: L’homme est un apprenti et la douleur est son maître  ( “o homem é um aprendiz e a dor é o seu mestre”).  Todo o sofrimento terá de possuir dentro de si o gérmen da esperança, a conquista de um bem maior, a felicidade. De contrário, não passa de dolorismo inútil, masoquismo estéril que conduzem à mais deplorável depressão. Frei Bento Domingues, com a lucidez dos seus oitenta anos, não se cansa de dizer: “Quem se deleita com  o sofrimento gratuito está precisando de um psiquiatra”.
O sofrimento, terá, pois, teleologicamente uma marca predominantemente  instrumental. Para os cristãos, incutiu-se-lhes durante séculos o estigma da Eucaristia como um Sacrifício. Nada de mais errado: A Eucaristia é um banquete, a Última Ceia, numa edição constantemente renovada, reveladora da magnânima personalidade de J:Cristo que, sabendo que iria ser traído e assassinado no dia seguinte, convidou os amigos para comer à sua mesa o pão da terra e o vinho novo da videira. Já no Velho Testamento, profetas houve que incarnaram esta convicção quando atribuíam a Deus esta máxima: “Eu prefiro a misericórdia ao sacrifício. Mais quero o Amor que os holocaustos”. E o próprio Maomé inscreveu no Corão este desiderato que poucos conhecem: ”Levar alegria nem que seja a um só coração vale mais que construir mil altares e mil sacrifícios”.   

2.
Não é a vida um dom sagrado que ninguém pode tocar, muito menos atentar contra ela?
Sem dúvida. Mas dela se hão-de deduzir as mesmas conclusões que acabei de explanar sobre o sofrimento. Ela há-de estar sempre ao serviço da Pessoa. Por mais paradoxal que possa parecer, tenho para mim que, ontologicamente, mil vidas não valem uma Pessoa. Mas uma Pessoa vale mil vidas. A interpretação de Vida como conceito autónomo pode desembocar numa exaltação do mais requintado egoísmo, nem que para isso tenha de sacrificar muitas outras vidas. Só vale a pena a existência enquanto força propulsora, central de energias renovadas projectando luz e sonho à nossa volta, ainda que, para tal, mirradas e vazias fiquem as nossas mãos. A esta luz e a este sonho, uma outra Pessoa, de nome Fernando, chamou “utopia e loucura”, há mais de cem anos, quando abriu a torrente do génio e definiu que sem elas,
                            Que é o homem
                            Mais que a besta sadia
                            Cadáver adiado que procria.

Em tudo isto terá pensado Brittany. Até na Última Ceia da letal poção, esquecendo-se de si mesma, deixou um rasto de luz e um redobro de esperança nos que, à sua volta, dela se despediam.
Gostei de ler ontem num dos diários do continente os optimistas depoimentos de António Arnaud, Moita Flores, Mário Zambujal. Vale a pena conferir.  

7.Nov.14

Martins Júnior